História do cerco de Lisboa, 2º capítulo;
Quando só uma
visão mil vezes mais aguda do que a pode dar a natureza seria capaz de
distinguir no oriente do céu a diferença inicial que separa a noite da
madrugada, o almuadem acordou. Acordava sempre a esta hora, segundo o sol,
tanto lhe fazendo que fosse verão como inverno, e não precisava de qualquer
artefacto de medir o tempo, nada mais que uma
mudança infinitesimal na escuridão do quarto, o pressentimento da luz apenas
adivinhada na pele da fronte, como um ténue sopro que passasse sobre as sobrancelhas
ou a primeira e quase imponderável carícia que, tanto quanto se sabe ou acredita,
é arte exclusiva e segredo até hoje não revelado daquelas formosas huris que esperam
os crentes no paraíso de Maomé. Segredo, e também prodígio, se não mistério intransponível,
é a virtude que elas têm de refazer a virgindade tão-logo a perdem, pelos vistos suprema
bem-aventurança na vida eterna, o que definitivamente vem provar que não se
acabam com esta os trabalhos próprios e alheios, outrossim os sofrimentos
imerecidos. O almuadem não abriu os olhos. Podia continuar deitado algum tempo
ainda, enquanto o sol, muito devagar, se vinha acercando do horizonte da terra,
porém tão longe de chegar que nenhum galo da cidade levantara a cabeça para
indagar dos movimentos da manhã. É certo que ladrou um cão, sem resultado, que
os mais dormiam, talvez a sonhar que em sonhos estavam ladrando. É um sonho,
pensavam, e deixavam-se dormir, rodeados por um mundo povoado de cheiros sem
dúvida estimulantes, mas nenhum tão urgente que os fizesse despertar em
sobressalto, o odor inconfundível da ameaça ou do medo, para não dar senão
estes exemplos elementares. O almuadem levantou-se tacteando no escuro, encontrou
a roupa com que acabou de cobrir-se e saiu do quarto. A mesquita estava silenciosa,
só os passos inseguros ecoavam sob os arcos, um arrastar de pés cautelosos, como
se temesse ser engolido pelo chão. A outra qualquer hora do dia ou da noite
nunca experimentava esta angústia do invisível, apenas no momento matinal,
este, em que iria subir a escada da almádena para chamar os fiéis à primeira
oração. Um escrúpulo supersticioso representava-lhe na imaginação a sua grave
culpa de continuarem os moradores a dormir quando já o sol estivesse sobre o
rio, e acordando de repelão, aturdidos pela luz clara, perguntassem, aos
gritos, onde estava o almuadem que não chamara à hora própria, alguém mais
caridoso diria, Por seu mal estará doente, e não era verdade, desaparecera,
sim, levado para o interior da terra por um génio das trevas maiores. A escada,
em caracol, era trabalhosa de subir, de mais sendo este almuadem já velho, felizmente
não precisava que lhe vendassem os olhos como às mulas das atafonas se faz para
que lhes não dê o mareio. Quando chegou acima sentiu na cara a frescura da
manhã e a vibração da luz alvorecente, ainda cor nenhuma, que a não pode ter
aquela pura claridade que antecede o dia e vem tanger na ele um arrepio subtil,
como de uns invisíveis dedos, impressão única que faz pensar se a desacreditada
criação divina não será, afinal, para humilhação de cépticos e ateus, um
irónico facto da história. O almuadem correu a mão, lentamente. ao longo do
parapeito circular até encontrar, insculpida na pedra, a marca que apontava a
direcção de Meca, cidade santa. Estava preparado. Uns instantes ainda para dar tempo
ao sol de assomar aos balcões da terra a sua primeira aura, e também para
tornar clara a voz, porque a ciência proclamativa de um almuadem há-de ficar
patente logo ao primeiro grito, e nele é que tem de demonstrar-se não quando a
garganta já se dulcificou com o trabalho
da fala e o consolo da comida. Aos pés do almuadem há uma cidade, mais abaixo
um rio, tudo dorme ainda, mas inquietamente. A manhã começa a mover-se sobre as
casas, a pele da água torna-se espelho do céu, e então o almuadem inspira fundo
e grita, agudíssimo, Allahu akbar, apregoando aos ares a sobre todas grandeza
de Deus, e repete, como gritará e repetirá as fórmulas seguintes, em extático
canto tomando o mundo por testemunha de que não há outro Deus senão Alá, e que
Maomé é o enviado de Alá, e tendo dito estas verdades essenciais chama à
oração, Vinde ao azalá, mas sendo o homem de natureza preguiçoso, ainda que
crente no poder Daquele que nunca dorme, o almuadem repreende caridosamente
esses outros a quem as pálpebras ainda pesam, A oração é melhor que o sono,
As-salatu jayrun min an-nawn, para os que nesta língua o entendem enfim concluiu
clamando que Alá é o único Deus, La ilaha illa llah, mas agora só uma vez, que
é quanto basta quando se trate de verdades definitivas. A cidade murmura as
orações, o sol apontou e ilumina as açoteias, não tarda que nos pátios apareçam
os moradores. A almádena está em plena luz. O almuadem é cego.
Não o tem
descrito assim o historiador no seu livro. Apenas que o muezim subiu ao minarete
e dali convocou os fiéis à oração na mesquita, sem rigores de ocasião, se era manhã
ou meio-dia, ou se estava a pôr-se o sol, porque certamente em sua opinião, o miúdo
pormenor não interessaria à história, somente que ficasse o leitor sabendo que
o autor conhecia
das coisas daquele tempo o suficiente para fazer delas responsável menção. E
isto lhe deveríamos agradecer porque o seu tema, sendo de guerra e de cerco,
portanto de virilidades superiores, dispensaria bem as deliquescências da
prece, que é de todas as situações a mais sujeita, pois nela se prontifica o
rezador sem luta, rendido por uma vez. Ainda que, para que não quede sem exame
e consideração o que esteja em contrário destas oposições entre oração e
guerra, aqui se pudesse recordar já, estando tão próximo o tempo e sendo tantas
e tão preclaras as testemunhas ainda vivas, aqui se pudesse recordar, tornamos
a dizer, aquele milagre de Ourique, celebérrimo, quando Cristo apareceu ao rei português,
e este lhe gritou, enquanto o exército prostrado no chão orava, Aos infiéis, Senhor,
aos infiéis, e não a mim que creio o que podeis, mas Cristo não quis aparecer
aos mouros, e foi pena, que em vez da crudelíssima batalha poderíamos, hoje,
registar nestes anais a conversão maravilhosa dos cento e cinquenta mil
bárbaros que afinal ali perderam a vida, um desperdício de almas de bradar aos
céus. É assim, nem tudo se pode evitar, nunca a Deus faltámos com os nossos
bons conselhos, mas o destino tem lá as suas leis inflexíveis, e quantas vezes
com inesperados e artísticos efeitos, como foi este de haver podido
aproveitar-se Camões do inflamado grito, distribuindo-o tal qual em dois versos
imortais. É bem verdade que na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se aproveita.
Eram bons
aqueles tempos, quando, para receber satisfação, não tínhamos mais que pedir
com as palavras apropriadas, mesmo em casos difíceis, por assim dizer já desenganado
o paciente e sem esperança de remédio. Exemplo disto é este mesmo rei, que, tendo
nascido de pernas encolhidas, ou atrofiadas, no falar de agora, foi extraordinariamente
curado, sem que médico algum lhe tivesse posto a mão em cima, e se puseram não
lhe adiantou. E até, certamente por ser pessoa fadada para a realeza, nem há sinais
de que tenha sido preciso importunar as altas potestades, à Virgem e ao Senhor
nos referimos, não aos anjos da sexta hierarquia, para que se produzisse o
salutar sucesso, graças ao qual, sabe-se lá, Portugal deve talvez a sua
independência. Foi caso que estando dormindo em sua cama D. Egas Moniz, aio do
menino Afonso, lhe apareceu Santa Maria em visão e disse, D. Egas Moniz,
dormes, e ele, que não sabia se estava acordado ou a sonhar, perguntou, para
ter a certeza, Senhora, quem sois vós, e ela respondeu, com bons modos, Eu sou
a Virgem, e te mando que vás a Carquere, que fica no concelho de Resende, e
cava em esse lugar e acharás uma igreja que em outro tempo foi começada em meu
nome, e acharás também uma imagem minha, conserta-a que bem necessitada está
depois do triste abandono, e depois farás aí vigília, e porás o menino sobre o
altar, e fica sabendo que nesse instante quedará sano e curado, e cuida bem
dele para o diante, que o meu Filho sei eu que tem na sua ideia dar-lhe cargo
de destruir os inimigos da fé, e claro está que não poderia fazê-lo assim de
pernas curtas. Acordou D. Egas Moniz o mais alegre que se pode, reuniu o pessoal
e, cavalgando a mula, foi dali a Carquere e mandou cavar no sítio indicado pela
Virgem, e não é que lá estava a igreja, mas a surpresa é nossa, não deles,
porque naqueles abençoados tempos não eram nunca gratuitos ou enganosos os
avisos superiores. Verdade é que não cumpriu D. Egas precisamente os ditados da
Virgem, que muito explicado ficou ter-lhe ela mandado que cavasse, entendemos
nós que por suas próprias mãos, e vai ele, que fez, deu ordem que outros
cavassem, os servos da gleba, provavelmente já naquela época havia destas
desigualdades sociais. Agradecemos à Virgem não ser ela melindrosa a pontos de
fazer encolher outra vez as pernas do menino Afonso, porque, assim como há milagres
para o bem, também os tem havido para o mal, testemunhem-no aqueles infelizes porcos
da Escritura que se lançaram ao precipício quando o Bom Jesus lhes meteu no corpo
os mafarricos que no endemoninhado estavam, de que resultou padecerem martírio os
inocentes animais, e só eles, pois muito maior tinha sido a queda dos anjos
rebeldes, logo feitos demónios, quando do motim, e, que se saiba, não morreu
nenhum, com o que não se pode perdoar a imprevidência de Deus Nosso Senhor que
por essa desatenção deixou fugir a oportunidade de lhes acabar com a raça por
uma vez, de bom conselho é o provérbio que previne, Quem o seu inimigo poupa,
às mãos lhe morre, oxalá não venha Deus a ter de arrepender-se um dia, tarde de
mais. Ainda assim, se nesse fatal instante tiver tempo de recordar a sua vida
passada, esperemos que se lhe faça luz no espírito e possa compreender que nos
deveria ter poupado, a todos nós, frágeis porcos e humanos, aqueles vícios,
pecados e sofrimentos de insatisfação que são, diz-se, a obra e a marca do
maligno. Entre o martelo e a bigorna somos um ferro em brasa que de tanto lhe
baterem se apaga.
De história
sacra, por agora, temos que nos chegue. Importaria saber, isso sim, é quem
escreveu o relato daquele formoso acordar de almuadem na madrugada de Lisboa, com
tal abundância de pormenores realistas que chega a parecer obra de testemunha
aqui presente, ou, pelo menos, hábil aproveitamento de qualquer documento coetâneo,
não forçosamente
relativo a Lisboa, pois, para o efeito, não se precisaria mais que uma cidade, um
rio e uma clara manhã, composição sobre todas banal, como sabemos. A resposta, surpreendente,
é que ninguém escreveu, que, embora pareça que sim, não está escrito, tudo aquilo
não foi mais que pensamentos vagos da cabeça do revisor enquanto ia lendo e emendando
o que escondidamente passara em falso nas primeiras e segundas provas. O revisor
tem este notável talento de desdobrar-se, desenha um deleatur ou introduz uma vírgula
indiscutível, e ao mesmo tempo, aceite-se o neologismo, heteronimiza-se, é
capaz de seguir o caminho sugerido por uma imagem, uma comparação, uma
metáfora, não raro o simples som duma palavra repetida em voz baixa o leva, por
associação, a organizar polifónicos edifícios verbais que tornam o seu pequeno
escritório num espaço multiplicado por si mesmo, ainda que seja muito difícil
explicar, em vulgar, o que tal coisa quer dizer. Lá lhe pareceu que era
informar pouco limitar-se o historiador a falar de muezim e minarete, unicamente
para introduzir, se são permitidos juízos temerários, um pouco de cor local e tinta
histórica no arraial inimigo, imprecisão semântica que convém corrigir
imediatamente, uma vez que arraial é de sitiantes, não de sitiados, que estes
estão, por enquanto, instalados com suficiente comodidade na cidade que, salvo
uma ou outra intermitência, é sua desde o ano de setecentos e catorze, pelas
contas dos cristãos, as do rosário mouro são outras, como se sabe. Esta
correcção fê-la o próprio revisor, que tem mais do que satisfatória ciência de
calendários e sabe que a Hégira começou, segundo a lição da Arte de Verificar
as Datas, obra indispensável, no dia dezasseis de julho de seiscentos e vinte e
dois, depois de Cristo, DC por abreviatura, sem esquecer, no entanto, que sendo
o ano muçulmano governado pela lua, portanto mais curto que o da cristandade,
orientado pelo sol, é sempre preciso descontar três anos por cada século
andado. Bom revisor seria este, assim escrupuloso, se cuidasse de aparar as
asas a um discorrer propenso a efabulações ocasionalmente
irresponsáveis, foi aqui o caso de ter pecado por facilitação, incorrendo em erros
evidentes e em assertos duvidosos, três é o que se desconfia, que, a
provarem-se, em definitivo mostram que não tinha razão nenhuma o historiador
quando lhe deu conselho, leviano, de que se dedicasse à história. Quanto à
filosofia, Deus nos livre.
O primeiro ponto
suspeito, segundo a ordem inversa do relato, é aquela peregrina ideia de
existirem, no parapeito das varandas das almádenas, sinais na pedra que apontariam,
provavelmente na forma de setas, a direcção de Meca. Por muito adiantada que estivesse
na época a ciência geográfica e agrimensora dos árabes e outros mouros, é pouco
crível que soubessem determinar, com a exactidão que se insinua, a posição de
uma caaba na superfície do planeta, onde precisamente sobreabundam as pedras,
umas mais sagradas que outras. Todas estas coisas, sejam elas reverências, ou
genuflexões, ou olhares para cima ou para baixo, se fazem por aproximação, ao
sentir, se podemos autorizar-nos esta linguagem de pescador à linha, o que
importa, afinal, é que Deus e Alá possam ler nos corações e não levem a mal
que, por ignorância, lhes voltemos as costas, e quando dizemos ignorância tanto
pode ser a nossa como a deles, que nem sempre estão onde se comprometeram a
estar. O revisor é homem deste tempo, habituaram-no a confiar e a firmemente
crer nos sinais das estradas, não admira que tivesse caído na anacrônica tentação,
quiçá impelido por um arrebato de caridade, tendo em conta a cegueira do almuadem.
É sabido que não é a qualidade do pano que evita as nódoas, diz-se mesmo que no
melhor deles é que a nódoa cai, e também que não há uma sem duas, pois aí temos
o segundo erro, este sim, gravíssimo, pois levaria o leitor desprevenido, se
escrita houvesse, e felizmente não há, a tomar por correcta e conforme com os
factos da vida muçulmana a descrição dos actos do almuadem depois de acordar.
Há erro, dizemos, porquanto o muezim, palavra preferida pelo historiador, não
procedeu às abluções rituais antes de chamar os crentes à oração, achando-se
por conseguinte em estado de impureza, situação improbabilíssima se
considerarmos quão próximos estamos ainda, no tempo, da primeira fonte do
Islão, quatro séculos e pico, por assim dizer, no berço. Lá mais para o diante
não faltarão relaxamentos, escamoteações de jejuns, interpretações duvidosas de
regras que parecem claras, é que não há nada que mais fatigue as pessoas do que
a observância rigorosa dos princípios, antes que a carne ceda já o espírito
fraquejou, mas a ele não pedem contas, à pobrezinha é que invectivam, insultam
e caluniam. Agora ainda se vive num tempo de fé completa, o almuadem seria o
último dos homens se ousasse subir à almádena sem levar o coração puro e as
mãos lavadas, e assim fica proclamado inocente da culpa com que o carregou a
ligeireza imperdoável do revisor. Apesar da competência profissional com que o
ouvimos expressar-se durante a conversa com o historiador, é tempo de introduzir
aqui uma primeira dúvida sobre as consequências da confiança de que o investiu o
autor da História do Cerco de Lisboa, acaso em hora de fatigada displicência ou
com preocupações de próxima viagem, quando permitiu que a leitura final das
provas fosse tarefa exclusiva
do técnico dos deleatures, sem fiscalização. Trememos só de imaginar que aquela
descrição do amanhecer do almuadem poderia tomar lugar, abusivo, no científico texto
do autor, frutos, um e outro, de estudos aturados, de pesquisas profundas, de confrontações
minuciosas. Duvida-se, por exemplo, ainda que seja sempre de boa prudência
duvidar da própria dúvida, que o historiador mencionasse no seu relato cães e ladrar
de cães, pois ele sabe que o cão, para os árabes, é impuro animal, como o é
tambémo porco, sendo portanto demonstração de crassa ignorância supor que os
mouros de Lisboa, tão zelosos, estariam vivendo paredes meias com a canzoada.
Chiqueiro à porta de casa e casota de mastim ou açafate de fraldiqueiro são
invenções cristãs, não será por casualidade indiferente que os muçulmanos
chamam perros aos guerreiros da cruz, e muita sorte que não lhes tenham chamado
cerdos, pelo menos não consta. Claro que, se realmente assim é, faz pena não
poder contar mais com a graça de um cão a ladrar à lua ou coçando a orelha
atormentada de carraças, mas a verdade, se finalmente a encontramos, deve ser
posta acima de todas as outras considerações, seja contra ou a favor, com o que
deveríamos, aqui mesmo, dar por não escritas as palavras que descreveram a
última madrugada pacífica de Lisboa se não soubéssemos já que aquele discurso
falso, embora coerente, e esse é o perigo maior, não saiu nunca da cabeça do
revisor, antes não passou de seu devaneio fabulante e irrisório.
Está
demonstrado, portanto, que o revisor errou, que se não errou confundiu, que se não
confundiu imaginou, mas venha atirar-lhe a primeira pedra aquele que não tenha errado,
confundido ou imaginado nunca. Errar, disse-o quem sabia, é próprio do homem, o
que significa, se não é erro tomar as palavras à letra, que não seria
verdadeiro homem aquele que não errasse. Porém, esta suprema máxima não pode
ser utilizada como desculpa universal que a todos nos absolveria de juízos
coxos e opiniões mancas. Quem não sabe deve perguntar,
ter essa humildade, e uma precaução tão elementar deveria tê-la sempre presente o
revisor, tanto mais que nem sequer precisaria sair de sua casa, do escritório
onde agora está trabalhando, pois não faltam aqui os livros que o elucidariam
se tivesse tido a sageza e prudência de não acreditar cegamente naquilo que
supõe saber, que daí é que vêm os enganos piores, não da ignorância. Nestas
ajoujadas estantes, milhares e milhares de páginas esperam a cintilação duma
curiosidade inicial ou a firme luz que é sempre a dúvida que busca o seu
próprio esclarecimento. Lancemos, enfim, a crédito do revisor ter reunido, ao
longo duma vida, tantas e tão diversas fontes de informação, embora um simples
olhar nos revele que estão faltando no seu tombo as tecnologias da informática,
mas o dinheiro, desgraçadamente, não chega a tudo, e este ofício, é altura de
dizê-lo, inclui-se entre os mais mal pagos do orbe. Um dia, mas Alá é maior,
qualquer corrector de livros terá ao seu dispor um terminal de computador que o
manterá ligado, noite e dia, umbilicalmente, ao banco central de dados, não
tendo ele, e nós, mais que desejar que entre esses dados do saber total não se
tenha insinuado, como o diabo no convento, o erro tentador.
Seja como for,
enquanto não chega esse dia, os livros estão aqui, como uma galáxia pulsante, e
as palavras, dentro deles, são outra poeira cósmica flutuando, à espera do
olhar que as irá fixar num sentido ou nelas procurará o sentido novo, porque
assim como vão variando as explicações do universo, também a sentença que antes
parecera imutável para todo o sempre oferece subitamente outra interpretação, a
possibilidade duma contradição latente, a evidência do seu erro próprio. Aqui,
neste escritório onde a verdade não pode ser mais do que uma cara sobreposta às
infinitas máscaras variantes, estão os costumados dicionários da língua e
vocabulários, os Morais e Aurélios, os Morenos e Torrinhas, algumas gramáticas,
o Manual do Perfeito Revisor, vademeco de ofício, mas também estão as histórias
da Arte, do Mundo em geral, dos Romanos, dos Persas, dos Gregos, dos Chineses,
dos Árabes, dos Eslavos, dos Portugueses, enfim, de quase tudo que é povo e nação
particular, e as histórias da Ciência, das Literaturas, da Música, das
Religiões, da Filosofia, das Civilizações, o Larousse pequeno, o Quillet
resumido, o Robert conciso, a Enciclopédia Política, a Luso-Brasileira, a
Britânica, incompleta, o Dicionário de História e Geografia, um Atlas Universal
destas matérias, o de João Soares, antigo, os Anuários Históricos, o Dicionário
dos Contemporâneos, a Biografia Universal, o Manual do Livreiro, o Dicionário
da Fábula, a Biografia Mitológica, a Biblioteca Lusitana, o Dicionário de Geografia
Comparada, Antiga, Medieval e Moderna, o Atlas Histórico dos Estudos Contemporâneos,
o Dicionário Geral das Letras, das Belas-Artes e das Ciências Morais e Políticas,
e, para terminar, não o inventário geral, mas o que mais à vista está, o
Dicionário Geral de Biografia e de História, de Mitologia, de Geografia Antiga
e Moderna, das Antiguidades e das Instituições Gregas, Romanas, Francesas e
Estrangeiras, sem esquecer o Dicionário de Raridades, Inverosimilhanças e
Curiosidades, onde, admirável coincidência que vem a matar neste aventuroso
relato, se dá como exemplo de erro a afirmação do sábio Aristóteles de que a
mosca doméstica comum tem quatro patas, redução aritmética que os autores
seguintes vieram repetindo por séculos e séculos, quando já as crianças sabiam,
por crueldade e experimentação, que são seis as patas da mosca, pois desde
Aristóteles as vinham arrancando, voluptuosamente contando, uma, duas, três,
quatro, cinco, seis, mas essas mesmas crianças, quando cresciam e iam ler o
sábio grego, diziam umas para as outras, A mosca tem quatro patas, tanto pode a
autoridade magistral, tanto sofre a verdade com a lição dela que sempre nos vão
dando.
Esta inesperada
incursão pelas fronteiras da entomologia mostra-nos, de concludente maneira,
que os erros assacados ao revisor não são afinal seus, mas destes livros que
não fizeram mais do que repetir, sem contra prova, obras mais antigas, e, sendo
assim, lamentemos quem
veio a ser vítima inocente da boa-fé própria e do alheio erro. É verdade que,
condescendendo tanto, voltaríamos a cair na desculpa universal já execrada, mas
não o faremos sem prévia condição, vem a ser que, para seu bem, atente o
revisor na estupenda lição que sobre os erros nos foi dada por Bacon, outro
sábio, no livro chamado Novum organum. Divide ele os erros em quatro
categorias, a saber, idola tribus, ou erros da natureza humana, idola specus,
ou erros individuais, idola fori, ou erros de linguagem, e finalmente idola
theatri, ou erros dos sistemas. Resultam eles, no primeiro caso, da imperfeição
dos sentidos, da influência dos preconceitos e paixões, do hábito de julgarmos tudo
segundo ideias adquiridas, da nossa insaciável curiosidade apesar dos limites
impostos ao nosso espírito, da inclinação que nos leva a encontrar mais
analogias entre as coisas do que as que realmente têm. No segundo caso, a fonte
dos errores vem da diferença entre os espíritos, uns que se perdem nos
pormenores, outros em vastas generalizações, e também da predilecção que temos
por certas ciências, o que nos inclina a tudo querer reduzir a elas. Quanto ao
terceiro caso, o dos erros de linguagem, o mal está em que muitas vezes as palavras
não têm qualquer sentido, ora têm-no indeterminado, ou podem ser tomadas em acepções
diversas, e, finalmente, quarto caso, são tantos os erros dos sistemas que não acabaríamos
nunca mais se começássemos a enumerá-los aqui. Valha-se, então, o revisor deste
catálogo e prosperará, e sirva-se também dos benefícios daquela sentença de
Séneca, reticente como aos dias de hoje convém, Onerat discentem turba, non
instruit, máxima lapidar que a mãe do revisor, há muitos anos, sem saber latim
e pouquíssimo da sua própria língua, traduzia com desassombrado cepticismo,
Quanto mais lês, menos aprendes.
Mas, alguma
coisa se salvando deste exame e contestação, confirme-se que não foi erro
escrever, porque, enfim, escrito está, que era cego o almuadem. O historiador,
que somente fala de minarete e muezim, talvez ignorasse que quase todos os
almuadens, naquele tempo e por muito tempo depois, eram cegos. E se o sabe,
porventura imagina que seria vocação particular da invalidez o canto da oração,
ou que as comunidades mouras resolviam assim, parcialmente, como sempre foi
feito e continuará a fazer-se, o problema de dar trabalho a gente a Quem
faltava o precioso órgão da visão. Erro seu, agora, que a todos invariavelmente
acaba por tocar. A verdade histórica, aprenda-o, é Que os almuadens eram
escolhidos entre os cegos, não por humanitária política de emprego ou encaminhamento
profissional fisiologicamente adequado, mas para que não pudessem devassar a
intimidade dos pátios e açoteias que, do alto da almádena, em figura dominavam.
O revisor já não se recorda de como o soube, certamente o terá lido em livro
digno de confiança, que o tempo não emendou, por isso pode insistir agora que
os almuadens eram cegos, sim senhor. Quase todos. Apenas, quando em tal lhe acontece
pensar, não consegue repelir de si uma dúvida, se a esses homens não lhes
furariam os olhos lúcidos, como se fazia e talvez se faça ainda aos rouxinóis,
para que da luz não conhecessem outra manifestação que uma voz ouvida nas
trevas, a sua, ou, porventura, a daquele Outro que não sabe mais que repetir as
palavras que vamos inventando, estas com que tentamos dizer tudo, bendição e
maldição, até o Que nome não terá nunca, inominável.
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