sexta-feira, 12 de julho de 2013

Raimundo Benvindo Silva


O revisor tem nome, chama-se Raimundo. Era já tempo de sabermos quem seja a pessoa de quem vimos falando indiscretamente, se é que nome e apelidos alguma vez puderam acrescentar proveito que se visse às costumadas referências sinaléticas e outros desenhos, idade, altura, peso, tipo morfológico, tom da pele, cor dos olhos, e dos cabelos, se lisos, crespos ou ondulados, ou simplesmente perdidos, metal da voz, límpida ou rouca, gesticulação característica, maneira de andar, porquanto a experiência das relações humanas tem demonstrado que, sabendo nós isto e às vezes muito mais, nem o que sabemos nos serve, nem somos capazes de imaginar o que nos falta. Talvez só uma ruga, ou a forma das unhas, ou a grossura do pulso, ou o traço da sobrancelha, ou uma cicatriz antiga e invisível, ou apenas o apelido que não chegara a ser dito, aquele que mais se estima, neste caso Silva, nome completo Raimundo Silva, assim se apresenta quando tem de o fazer, omitindo o Benvindo do que não gosta. Ninguém está satisfeito com o que lhe coube em sorte, esta é uma geral verdade, e Raimundo Silva, que sobre todo o mais deveria apreciar chamar-se Benvindo, que precisamente diz o que quer dizer, bem-vindo à vida, meu filho, pois não senhor, não gosta do nome, felizmente, diz ele, que se perdeu a tradição de decidirem os padrinhos sobre a melindrosa questão da onomástica, embora reconheça que lhe agrada muito ser Raimundo, por um não sei quê de solene ou antigo que há na palavra. Dos bens da senhora que foi madrinha esperavam os pais de Raimundo alguma parte para o futuro do filho, por isso é que, faltando ao costume que mandava dar ao menino apenas o nome do padrinho, se acrescentou o nome da paraninfa, passado a masculino. O destino não atende da mesma maneira a todas as coisas, sabemo-lo bem, mas neste caso alguma concomitância se há-de reconhecer entre uns bens de que nunca houve benefício e um nome tão resolutamente repudiado, não se devendo, porém, suspeitar da existência de uma relação de causa e efeito entre a decepção e a rejeição. Em Raimundo Benvindo Silva, os motivos, que em momento algum da sua vida haviam sido de rancorosa frustração, são hoje, uns, meramente estéticos, por não lhe soar bem a vizinhança dos dois gerúndios e os outros, por assim dizer, éticos e ontológicos, porque, segundo a sua maneira desenganada de entender, só uma ironia muito negra pretenderia fazer crer que alguém é realmente bemvindo a este mundo, o que não contradiz a evidência de alguns se acharem bem instalados nele.

Da varanda, breve sacada antiga sob um alpendre de madeira ainda com forro de caixotões, vê-se o rio, e é um imenso mar o que os olhos alcançam entre raio e raio, desde o traço vermelho da ponte até aos rasos sapais de Pancas e Alcochete. Uma neblina fria tapa o horizonte, aproxima-o quase ao alcance da mão, a cidade visível está reduzida a estelado, com a Sé em baixo, a meia encosta, e em degraus os telhados das casas, descendo até à água baça, parda, onde uma fugidia esteira branca se abre quando um barco rápido passa, outros há que navegam dificilmente, pesados, como se estivessem lutando contra uma corrente de mercúrio, comparação esta que seria bem mais apropriada à noite, não agora. Raimundo Silva levantou-se menos cedo do que é seu costume, trabalhara pela noite dentro, um serão longo, arrastado, e quando, de manhã, abriu a janela, bateu-lhe este nevoeiro na cara, mais fechado do que o vemos a esta hora, meio-dia, quando o tempo vai ter de decidir se carrega ou alivia, de acordo com a voz popular. Então as torres da Sé não eram mais do que um borrão apagado, de Lisboa pouco mais havia que um rumor de vozes e de sons indefinidos, a moldurada janela, o primeiro telhado, um automóvel ao comprido da rua. O almuadem, cego, tinha gritado para o espaço duma manhã luminosa, rubra, e logo azul, a cor do ar entre a terra que aqui está e o céu que nos cobre, se quisermos acreditar nos insuficientes olhos com que viemos ao mundo, mas o revisor, que hoje quase tão cego se vê como ele, apenas resmungou, com o mau humor de quem, tendo dormido mal, andara em trabalhosos sonhos de cerco, montantes, alfanges e fundas baleares, irritado, ao acordar, por não conseguir lembrar-se de como eram feitas as tais máquinas de guerra, das fundas é que falamos, e das profundas falas de quem no sonho estava falaríamos, mas não caiamos já na tentação de antecipar os factos, agora só devemos lamentar a oportunidade perdida de saber-se, enfim, que máquinas eram as ditas fundas, como se armavam e disparavam, que não é tão raro assim revelarem-se nos sonhos grandes mistérios, e entre eles não incluímos o número da sorte grande, banalidade suprema e indigna de qualquer sonhador que se respeite. Ainda na cama, Raimundo Silva, perplexo, perguntava a si mesmo por que razão insistia em pensar nas fundas baleares, ou fundíbulos, como também se diria, acertando por igual, Baleares não deve ter nada que ver com as ilhas do mesmo nome, virá de balas, e balas sabemos o que são, projécteis, pedras que as máquinas atirariam contra os muros e por cima deles, para caírem sobre as casas e a gente de dentro, espavorida, mas balas não é palavra daquele tempo, as palavras não podem ser levianamente transportadas de cá para lá e de lá para cá, cuidado, aparece logo alguém que diz, Não percebo. Adormeceu, esteve assim dez minutos, e ao despertar de novo, agora lúcido, afastou do pensamento as máquinas que teimavam em voltar e deixou que as imagens das espadas e das cimitarras lhe ocupassem perigosamente o espírito, sorriu na penumbra do quarto porque bem sabia que se tratava de evidentes símbolos fálicos, é certo que atraídos ao sonho pela História do Cerco de Lisboa, mas em si enraizados, quem o duvida, se armas de ponta e fio têm raízes, cravadas, sim, estarão, bastava olhar a cama vazia a seu lado para compreender tudo. Deitado de costas, cruzou os braços sobre os olhos, murmurou sem nenhuma originalidade, Mais um dia, não ouvira o almuadem, como se arranjaria naquela religião um mouro surdo para não faltar às orações, sobretudo a da manhã, decerto pediria a um vizinho, Em nome de Alá, bate à porta com força e não pares de bater enquanto eu não vier abrir. A virtude não é tão fácil como o vício, mas pode ser ajudada.

Nesta casa não vive mulher. Duas vezes por semana vem uma de fora, mas não se pense que aquele lugar vago da cama tem que ver com a bissemanal visita, são diferentes precisões, ficando desde já explicado que para o alívio das importunações mais imperiosas da carne o revisor desce à cidade, contrata, satisfaz-se e paga, sempre teve de pagar, que remédio, mesmo quando não se achou satisfeito, que o verbo não tem um sentido só, como se crê vulgarmente. A mulher que vem de fora é o que chamamos a-dias, trata-lhe da roupa, arruma e limpa o mais substancial da casa, põe a cozer uma grande panela de sopa, a mesma, feijão branco e hortaliça, que dará para alguns dias, não é que ao revisor não caiam bem outras variedades, mas reserva-as para o restaurante, aonde vai uma vez por outra, sem exageros de assiduidade. Não há pois mulher nesta casa, nem nunca a houve. O revisor Raimundo Benvindo Silva é solteiro e não pensa em casar-se, Tenho mais de cinquenta anos, diz ele, quem é que me iria querer agora, ou a quem iria eu querer, ainda que, como todo o mundo sabe, seja muito mais fácil querer do que ser querido, e este último comentário, que se diria ser como o eco duma dor passada, agora tornada em sentença para lição dos confiados, este comentário, mais a pergunta que o precedeu, fá-los ele a si próprio, porque é homem bastante reservado para não andar aí a derramar-se por amigos e conhecidos, que os terá, embora, provavelmente, não vá ser preciso convocá-los ao relato, pelo jeito que ele leva. Não tem irmãos, os pais morreram-lhe nem cedo nem tarde, a família, se resta alguma, anda dispersa, notícias dela, quando chegam, pouco adiantam à tranquilidade de afinal não a ter, a alegria passou, o luto não vale a pena, e a única coisa que verdadeiramente sente próxima de si é a prova que estiver a ler, enquanto dura, o erro que é preciso desemboscar, e também, quando calha, uma preocupação que não teria de ser sua, lá se avenham os autores, que para isso levam as honras, corno este desassossego agora das fundas baleares que lhe voltou ao pensamento e não quer sair. Raimundo Silva levantou-se, enfim, procurou com os pés as babuchas, Chinelos, chinelos, que é a palavra cristã, vinda de Génova e aqui, também ela, passada a masculino, e entrou no escritório enquanto vestia o roupão por cima do pijama. De longe em longe, a mulher a- dias faz-lhe solene declaração sobre a necessidade de limpar o pó dos livros, que, sobretudo nas prateleiras altas, onde se arrumam os que só muito raramente são consultados, mais parece ser o depósito aluvial duma acumulação de séculos, um pó negro, como de cinza, que não se sabe donde vem, de tabaco não pode ser, que o revisor há muito que deixou de fumar, é a poeira do tempo, e está tudo dito. Sem que se saiba bem porquê, a tarefa é sempre adiada, o que, calcula-se, não desagrada à ancilar pessoa, aos seus próprios olhos absolvida pela intenção, e que não perde nenhuma ocasião de dizer, Mas olhe que a culpa não é minha.

Raimundo Silva procura nos dicionários e enciclopédias, vê em Armas, em Idade Média, busca Máquinas de Guerra, e encontra as descrições vulgares do arsenal da época, rudimentar, basta dizer que então não se conseguia matar um homem escolhido que estivesse a duzentos passos de distância, forte perda, nem nada que se comparasse, e para a caça, se não havia à mão arco ou besta, tinha o caçador de acercar-se aos braços do urso ou aos galhos do cervo ou aos dentes do javardo, hoje o que ainda conserva parecenças com tão arriscadas aventuras é a corrida de touros, os toureiros são os últimos homens antigos. Em nenhum lugar se explica nestes potentes volumes, nenhum desenho dá uma ideia ao menos aproximada do que fosse aquela mortífera fábrica que tanto amedrontava os mouros, mas esta ausência de informação já não é novidade para Raimundo Silva, agora o que ele quer descobrir é por que se chamava balear à funda, e vai de livro em livro, rebusca, impacienta-se, até que, finalmente, o precioso, o inestimável Bouillet lhe ensina que os habitantes das Baleares eram considerados, na Antiguidade, os melhores arqueiros do mundo conhecido, que era, evidentemente, todo, e que daí tinham tomado as ilhas o nome, pois em grego atirar diz-se ballô, não há nada mais claro, qualquer simples revisor é capaz de ver a etimológica linha recta que liga ballô a Baleares, o erro, tratando-se da funda, está em ter-se escrito balear quando baleárica é que seria correcto, senhor doutor. Mas Raimundo Silva não emendará, o uso faz alguma lei, quando a não fez toda, e, acima de tudo, primeiro mandamento do decálogo do revisor que aspire à santidade, aos autores deve-se evitar sempre o peso de vexações. Arrumou o livro, abriu a janela, e foi então que o nevoeiro lhe deu na cara, denso, cerradíssimo, se no lugar das torres da Sé ainda estivesse a almádena da mesquita maior, decerto não a poderia ver, por tão delgada que era, aérea, imponderável quase, e então, se essa fosse a hora, a voz do almuadem desceria do céu branco, directamente de Alá, por uma vez louvador em causa própria, o que de todo não poderíamos censurar-lhe porque, sendo quem é, com certeza se conhece bem.
Ia a manhã em meio quando o telefone tocou. Era da editora, queriam saber notícias sobre o andamento da revisão, quem começou por falar foi a Mónica da Produção que tem, como todos os que trabalham nesse sector o hábito da menção majestática, assim, Senhor Silva, disse a Produção pergunta, parece que estamos a ouvir, Sua Alteza Real quer saber, e repete como os arautos repetiam A Produção pergunta pelas provas, se falta muito para entregá-las, mas ela, a Mónica, ainda não percebeu, depois de tanto tempo de vida em parte comum, que Raimundo Silva detesta que lhe chamem Silva sem mais nada, não que o aborrece a vulgaridade do nome, que anda pela dos Santos e Sousas, mas porque lhe faz falta o Raimundo, por isso respondeu, seco, ferindo injustamente a pessoa delicada que Mónica é, Diga lá que amanhã está pronto o trabalho Eu digo, senhor Silva, eu digo, e mais não acrescentou porque o telefone foi tomado bruscamente por outra pessoa, Fala Costa, Aqui Raimundo Silva, pôde o revisor responder, Já sei, é que as provas preciso delas ainda hoje, tenho a programação estoirada, se não meto o livro a imprimir amanhã de manhã arma-se um sarilho dos diabos, e tudo por causa da revisão, Para este tipo de livro, assunto, número de páginas, o tempo de revisão está dentro da média, Não me venha com médias, quero o trabalho acabado, a voz do Costa subira, sinal de que deveria estar por perto um chefe um director, talvez o próprio patrão. Raimundo Silva inspirou fundo, argumentou, Revisões feitas à pressa dão ocasião a erros, E livros que se atrasam na saída significam prejuízo não há dúvida, o patrão assiste à conversa, mas o Costa acrescenta, Vale mais deixar passar duas gralhas do que perder um dia de vendas, fique sabendo, não, o patrão não está, nem director, nem chefe, o Costa não admitiria com tanta naturalidade erros de revisão em proveito da rapidez, É uma questão de critérios, respondeu Raimundo Silva e o Costa, implacável, Não me fale de critérios, conheço bem o seu, o meu é muito simples, preciso dessas provas para amanhã, sem falta, arranje-se como quiser, a responsabilidade é sua, Já tinha dito à Mónica que o trabalho estará pronto amanhã, Amanhã tem ele que entrar na máquina, Entrará, pode mandar buscá-lo às oito horas, É cedo de mais, a essa hora ainda isto está fechado, Então mande buscar quando quiser, não posso continuar aqui a perder tempo, e desligou. Raimundo Silva está acostumado, não toma muito a peito as impertinências do Costa, más-criações sem maldade, coitado do Costa, que não pára de falar da Produção, A Produção é que se trama sempre, diz ele, sim senhor, os autores, os tradutores, os revisores, os capistas, mas se não fosse cá a Produçãozinha, eu sempre queria ver de que é que lhes adiantava a sapiência, uma editora é como uma equipa de futebol, muito floreado lá na frente, muito passe, muito drible, muito jogo de cabeça, mas se o guarda-redes for daqueles paralíticos ou reumáticos vai-se tudo quanto Marta fiou, adeus campeonato, e o Costa sintetiza, algébrico desta vez, A Produção está para a editora como o guarda-redes está para a equipa. O Costa tem razão.

Chegando a hora do almoço, Raimundo Silva fará uma omeleta de três ovos com chouriço, excesso dietético que o seu fígado por enquanto ainda aguenta. Com um prato de sopa, uma laranja, um copo de vinho, um café para rematar, de mais não necessita quem tem esta vida sedentária. Lavou cuidadosamente a louça, gasta mais água e detergente do que o preciso, enxugou-a, arrumou-a no armário da cozinha, é um homem ordenado, um revisor no absoluto sentido da palavra, se é que alguma palavra pode existir e continuar a existir levando consigo um sentido absoluto, para sempre, uma vez que o absoluto não pede menos. Antes de voltar ao trabalho foi ver como estava o tempo, limpara um pouco, a outra margem do rio já começa a ser visível, apenas uma linha escura, um borrão alongado, o frio não parece ter diminuído. Sobre a secretária estão quatrocentas e trinta e sete provas de página, em duzentas e noventa e três já foi feita a verificação das emendas, o que falta não é coisa que assuste, o revisor tem a tarde toda, e a noite, sim, também a noite, porque é seu profissional escrúpulo fazer sempre uma derradeira leitura, seguida, como um leitor comum, finalmente o prazer e a felicidade de compreender de uma maneira livre, solta, sem desconfianças, tinha muita razão aquele autor que perguntou um dia, Aos olhos de um falcão, como seria a pele de Julieta, ora, o revisor em sua agudíssima tarefa, é precisamente o falcão, mesmo quando já se lhe for cansando a vista, porém, em chegando a hora da leitura final, é tal qual Romeu quando olhou pela primeira vez Julieta, inocente, trespassado de amor.

Neste caso da História do Cerco de Lisboa, já sabe Romeu que não encontrará motivos bastantes de embevecimento, embora Raimundo Silva, na conversação preambular e algo labiríntica sobre as emendas dos erros e os erros das emendas, tenha dito ao autor que gostava do livro, e, de facto, não mentiu. Mas, que é gostar, perguntamos nós entre o muito gostar e o nada gostar está o menos e o pouco, e não chega escrevê-lo para sabermos que partes de sim, de não e de talvez comporta tudo aquilo, seria preciso proferi-lo em voz alta, o ouvido capta a vibração última, capta sempre, e quando nos enganamos ou nos deixamos enganar é só porque não demos ao ouvido ouvidos suficientes. Reconheça-se, porém, que aquele diálogo nada teve de enganador neste ponto, logo se percebeu que se tratava dum gostar sem cor, alheado, disse Raimundo Silva aquela palavra morna, Gosto, e ainda mal acabou de ser dita já está fria. Em quatrocentas e trinta e sete páginas não se encontrou um facto novo, uma interpretação polémica, um documento inédito, sequer uma releitura. Apenas mais uma repetição das mil vezes contadas e exaustas histórias do cerco, a descrição dos lugares, as falas e as obras da real pessoa, a chegada dos cruzados ao Porto e sua navegação até entrarem no Tejo, os acontecimentos do dia de S. Pedro, o ultimato à cidade, os trabalhos do sítio, os combates e os assaltos a rendição, finalmente o saque, die vero quo omnium sanctorum celebratur ad laudem et honorem nominis Christi ET sanctissimae ejus genitricis purificatum est templum, dizem que escreveu Osberno, entrado na imortalidade das letras graças ao cerco e tomada de Lisboa e às histórias que deles se contaram, significando este latim, traduzido por cima do ombro de quem sabe, que no Dia de Todos os Santos passou a corrupta mesquita a puríssima igreja católica, e agora sim, agora é que o almuadem nunca mais poderá chamar os crentes à oração de Alá, vão substituí-lo por um sino ou sineta depois de terem substituído um deus por outro, feliz caso teria sido terem-no deixado ir, É cego, coitado, salvo se de ira sanguinária cego ia precisamente o cruzado Osberno, só igual de nome, quando viu à frente da sua espada um mouro velho que nem para fugir tinha já forças, ali espojado no chão, agitando as pernas e os braços como se intentasse afundar-se pela terra dentro, este medo real em vez do outro, imaginário, e há-de consegui-lo, tão certo como estar vivo ainda, mas não por muito tempo mais dizemos nós, nem sozinho poderá, porque estará morto então, pensou o revisor, por enquanto estão a ser abertas as valas comuns. A intervalos, vindo do rio, ouve-se um mugido rouco de sereia, está assim desde manhã, a avisar a navegação, mas só neste instante é que Raimundo Silva deu por ele, talvez por causa do grande e súbito silêncio que dentro de si se fez.

É janeiro, anoitece cedo. A atmosfera do escritório pesa, abafada. As portas estão fechadas. Para defender-se do frio, o revisor tem uma manta sobre os joelhos, o calorífero mesmo ao lado da secretária, quase a escaldar-lhe os tornozelos. Já se percebeu que a casa é antiga, sem conforto, de um tempo espartano e bronco, quando sair para a rua, na altura dos frios maiores, ainda era o melhor remédio para quem não dispusesse senão de um corredor gélido onde aquecer o corpo em pequenos exercícios de marcha. Mas, nesta última página da História do Cerco de Lisboa pode Raimundo Silva encontrar a ardente expressão de um patriotismo fervoroso, que decerto saberá reconhecer se a vida monótona e paisana não lhe entibiou o seu próprio, agora se arrepiará, sim, mas daquele sopro único que vem da alma dos heróis, repare-se no que escreveu o historiador, No alto do castelo o crescente muçulmano desceu pela derradeira vez e, definitivamente, para sempre, ao lado da cruz que anunciava ao mundo o baptismo santo da nova cidade cristã, elevou-se lento no azul do espaço, beijado da luz, sacudido das brisas, a despregar-se ovante no orgulho da vitória, o pendão de D. Afonso Henriques, as quinas de Portugal, merda, e que não se cuide que a má palavra a dirige o revisor ao nacional emblema, é antes o legítimo desabafo de quem, tendo sido ironicamente repreendido por ingénuos erros da imaginação, vai ter de consentir que passem a salvo outros não seus, quando o que lhe está a apetecer, e com justo direito, é lançar nas margens do papel uma chuva de indignados deleatures, porém, já sabemos, não o fará, que com emendas deste calibre ficaria avexado o autor, Reduza-se o sapateiro à observação da gáspea, que só para isso é que lhe pagam, estas foram as impacientes palavras de Apeles, definitivas. Ora, estes erros não são como os das fundas, simples bagatela entre uma talvez-sim e uma talvez-não, que em boa verdade tanto nos dá hoje que lhes chamem baleáricas como baleares, o que de todo não se deveria permitir é esta insensatez de falar de quinas em tempo de D. Afonso o Primeiro, quando só no reinado de seu filho Sancho foi que elas tomaram lugar na bandeira, e ainda assim dispostas não se sabe como, se em cruz ao centro, se uma aí e as outras cada qual em seu canto, se ocupando o campo todo, esta, segundo as autoridades mais sérias, a hipótese forte. Nódoa grave, mas não única, que para todo o sempre ficará manchando a página final da História do Cerco de Lisboa, sobre o demais tão ricamente instrumentada de tubas retumbantes, tão de tambores, tão de retórico arrebato, com as tropas formadas em parada, assim as imaginamos, pé-terra infantes e cavaleiros, assistindo ao arriar do estandarte abominável e ao hastear da insígnia cristã e lusitana, gritando numa só voz Viva Portugal e batendo com as espadas nos escudos, em enérgica algazarra militar, e depois o desfile perante o rei, que está calcando aos pés, vindicativamente, além do sangue mouro, o crescente muçulmano, segundo erro e supremo disparate, que nunca tal bandeira foi erguida sobre os muros de Lisboa, pois, como o historiador não deveria ignorar, crescente em bandeira foi invenção do império otomano, dois ou três séculos mais tarde. Raimundo Silva ainda pousou o bico da esferográfica sobre as quinas, mas logo pensou que se dali as tirasse, e ao crescente, seria como um terramoto na página, tudo viria abaixo, história sem remate a condizer com a grandeza do instante, e esta lição é muito boa para instruir-se a gente sobre a importância duma coisa que, à primeira vista, não passa de um pedaço de pano de uma ou várias cores com figuras recortadas também diversamente coloridas, que tanto podem ser castelos como estrelas, ou leões, ou unicórnios, ou águias, ou sóis, ou foices, ou martelos, ou chagas, ou rosas, ou sabres, ou machetes, ou compassos, ou rodas, ou cedros, ou elefantes, ou bois, ou barretes, ou mãos, ou palmeiras, ou cavalos, ou candelabros, eu que sei, perdese uma pessoa neste museu se não leva guia nem catálogo, pior ainda se às bandeiras se lembrar de juntar os brasões, que tudo é uma família só, então será um nunca mais acabar de flores-de-lis, de conchas, de fivelas, de leopardos, de abelhas, de guisos, de árvores, de báculos, de mitras, de espigas, de ursos, de salamandras, de garças, de anéis, de patos, de pombos, de javalis, de virgens, de pontes, de corvos e caravelas, de lanças, de livros, sim, até livros, a Bíblia, o Corão, o Capital, adivinhe quem puder, e mais, e mais, de tudo isto se podendo concluir que os homens são incapazes de dizer quem são se não puderem alegar que são outra coisa, motivo afinal suficiente, neste caso, para que aí deixemos ficar o episódio das bandeiras, a decaída e a exaltada, mas cientes de que tudo não passa de mentira, útil até certo ponto, ó máxima vergonha, pois que não tivemos a coragem de emendá-la nem saberíamos pôr no seu lugar a verdade substancial, aspiração sobre todas excessiva, porém inextinguível, que Alá se amerceie de nós.

Pela primeira vez em tantos anos de ofício minucioso, Raimundo Silva não fará leitura final e completa de um livro. São, como já foi dito, quatrocentas e trinta e sete páginas fortíssimas de notas, para ler tudo teria de ficar acordado a noite inteira, ou pouco menos, e não lhe apetece o martírio, tomou-se de resoluta antipatia pela obra e pelo autor dela, amanhã irão dizer os leitores inocentes e repetirá a juventude das escolas que a mosca tem quatro patas, por assim o ter afirmado Aristóteles, e no próximo centenário da tomada de Lisboa aos mouros, no ano de dois mil e quarenta e sete, se Lisboa houver ainda e portugueses nela, não faltará um presidente para evocar aquela suprema hora em que as quinas, ovantes no orgulho da vitória, tomaram o lugar do ímpio crescente no céu azul da nossa formosa cidade.
No entanto, exige-lhe a consciência profissional que, ao menos, vá percorrendo devagar as páginas, os olhos expertos vagando sobre as palavras, confiado em que, variando assim o nível de atenção, qualquer erro menor de alçada sua se deixaria surpreender, como sombra que o movimento do foco luminoso subitamente deslocou, ou aquele conhecido relance da visão lateral que capta, no último instante, uma imagem em fuga. Importa nada saber se Raimundo Silva conseguiu limpar de todo as enfadonhas laudas, o que sim valerá a pena é observá-lo enquanto relê o discurso que D. Afonso Henriques fez aos cruzados, conforme a versão dita de Osberno, ali traduzida do latim pelo próprio autor da História, que não se fia das lições alheias, mormente tratando-se de matéria de tal responsabilidade, nem mais nem menos a primeira fala averiguada do nosso rei fundador, que outra, aliás, não se conhece bastantemente autorizada. Para Raimundo Silva, o discurso é, todo ele, de ponta a ponta, uma absurdidade, não que se permita duvidar do rigor da tradução, que não está a latinaria entre as suas prendas de revisor apenas médio, mas porque não se pode, é que não se pode mesmo acreditar que da boca deste rei Afonso, sem prendas, ele, de clérigo, tenha saído a complicada fala, bem mais à semelhança dos sermões arrebicados que os frades hão-de dizer daqui a seis ou sete séculos do que dos curtos alcances duma língua que ainda agora começava a balbuciar. Estava o revisor, assim, sorrindo escarninhamente, quando de súbito lhe deu o coração um salto, afinal, se Egas Moniz foi tão bom aio quanto dele proclamam os anais, se não nasceu só para levar o aleijadinho a Carquere ou, mais tarde, para ir a Toledo de baraço ao pescoço, então seguramente não teria faltado ao seu pupilo com suficientes máximas cristãs e políticas, e sendo o latim, por excelência, o veículo destes aperfeiçoamentos, é de supor que o real menino, além de explicar-se naturalmente em galego, latinizaria o quantum satis para poder declamar, chegada a hora, perante tantos e tão cultos cruzados estrangeiros, a arenga supracitada, uma vez que eles, de línguas, não entenderiam então mais do que a sua de berço e iguais rudimentos da outra, com a ajuda dos frades intérpretes. Saberia portanto D. Afonso Henriques latim e não precisou de dar homem por si na célebre assembleia, quiçá, até, tenha sido ele o próprio autor das célebres palavras, hipótese muito plausível em pessoa que, por seu mesmo punho, e no mesmo latim, tinha escrito a História da Conquista de Santarém, consoante gravemente no-lo explica Barbosa Machado na sua Bibliotheca Lusitana, mais nos informando que o manuscrito, ao tempo, se conservava no arquivo do Real Convento de Alcobaça, no fim de um Livro de S. Fulgêncio. Há que dizer que o revisor não crê em uma só palavra do que os seus olhos estão vendo, sobeja-lhe o cepticismo, ele próprio já o declarou, e para cortar a direito, como também para distrair-se dos enfados desta leitura obrigada, foi à fonte limpa das Historiografias modernas, buscou e encontrou, bem me queria a mim parecer, Machado, crédulo, copiou sem conferir o que haviam escrito Frei Bernardo de Brito e Frei António Brandão, é assim que se arranjam os equívocos históricos, Fulano diz que Beltrano disse que de Cicrano ouviu, e com três autoridades dessas se faz uma história, sendo afinal certo que a da Conquista de Santarém a escreveu um cónego regrante de Santa Cruz de Coimbra, de quem nem o simples nome ficou para tomar na biblioteca o lugar a que tem justo direito e dela retirar o rei usurpador.

Raimundo Silva está de pé, tem posta sobre os ombros a manta, mas de jeito que uma ponta arrasta pelo chão quando se move, e em voz alta lê, como um arauto lançando as proclamas, isto é, o discurso que aos cruzados fez el-rei nosso senhor, por esta guisa, Sabemos bem, e temos diante dos olhos, que vós haveis de ser homens fortes, denodados e de grande destreza, e, em verdade, a vossa presença não diminuiu à nossa vista o que de vós nos dissera a fama. Não vos reunimos aqui para saber o quanto a vós, homens de tanta riqueza, seria bastante prometer para que, enriquecidos com as nossas dádivas, ficásseis conosco para o cerco desta cidade. Dos mouros, sempre inquietados, nunca pudemos acumular tesouros, com os quais acontece algumas vezes não se poder viver em segurança. Mas, porque não queremos que ignoreis os nossos recursos e quais as nossas intenções para convosco, entendemos que nem por isso deveis desprezar a nossa promessa, pois consideramos como sujeito ao vosso domínio tudo o que a nossa terra possui. Duma coisa porém estamos certos, e é que a vossa piedade vos convidará mais a este trabalho e ao desejo de realizar tão grande feito, do que vos há-de atrair à recompensa a promessa do nosso dinheiro. Ora, para que com a algazarra dos vossos homens não seja perturbado o que vos disser, escolhei quem vós quiserdes, a fim de que, retirados à parte uns e outros, benigna e sossegadamente determinemos em conjunto a causa da nossa promessa, e resolvamos sobre aquilo que vos expomos, para depois ser explicado a todos em comum o que tivermos resolvido, e assim, dado o assentimento de ambas as partes, com juramento e garantias certas, seja isso ratificado para interesse de Deus.

Não este discurso não é obra de rei principiante, sem excessiva experiência diplomática, aqui tem dedo, mão e cabeça de eclesiástico maior, talvez o próprio bispo do Porto, D. Pedro Pitões, e seguramente o arcebispo de Braga, D. João Peculiar, que juntos e concertados tinham logrado persuadir os cruzados, de passagem no Douro, a virem ao Tejo ajudar à conquista, dizendo-lhes, por exemplo, Ao menos ouçam as razões que a favor da prestação de auxílio temos para dar-lhes, à vista da mercadoria. E tendo a viajem do Porto até Lisboa durado três dias, não é preciso ser dotado duma imaginação prodigiosa para supor que os dois prelados, de caminho vieram fazendo o rascunho, com o fito de adiantar trabalho, ponderando os argumentos, insinuando muito, acautelando o possível, com promessas liberalíssimas envolvidas em prudentes reservas mentais, não esquecendo a lisonja, recurso embaidor que geralmente frutifica em mil por um, mesmo se o terreno é sáfaro e pouco destro o semeador. Raimundo Silva, afogueado, deixa cair a manta com teatral ademane, sorri sem alegria, Isto não é discurso em que se acredite, mais parece lance shakespeariano que de bispos arrabaldinos, e regressa à secretária senta-se, abana a cabeça sucumbidamente, Pensarmos nós que nunca viremos a saber que palavras disse realmente D. Afonso Henriques aos cruzados, ao menos bons dias, e que mais, e que mais, e a claridade ofuscante desta evidência, não poder saber, aparece-lhe, se súbito, como uma infelicidade, seria capaz de renunciar a alguma coisa, não se pergunta quê nem quanto, a alma, se a há, os bens, se os tivesse, para encontrar, de preferência nesta parte de Lisboa onde vive e que é precisamente um papel era a cidade toda, um pergaminho, um papiro, avulso, um recorte de jornal, uma gravação, podendo ser, ou uma lápide insculpida, que registasse a vera fala, o original, por assim dizer, porventura menos subtil em arte dialéctica do que esta versão amaneirada, onde justamente faltam as fortes palavras dignas da ocasião.

O jantar foi rápido, simples, ainda mais ligeiro que o almoço, mas Raimundo Silva bebeu duas chávenas de café em vez de uma, para se defender do sono que não tardaria a ameaçar, vista a mal dormida noite passada. Num ritmo certo, as páginas vão mudando de lugar, sucedem-se os quadros e os episódios, agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discórdia que se levantou entre os cruzados, depois da arenga real, sobre se deveriam, ou não, ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa, se ficariam aqui ou seguiriam, como previsto, para a Terra Santa, onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo, sob os ferros turcos. Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lançar fora da cidade a estes mouros e fazê-la cristã seria também serviço de Deus, contestavam os contrários que, se esse era serviço de Deus, serviço menor seria, e que cavaleiros tão principais como ali todos se prezavam de ser tinham por obrigação acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra, não neste cu do mundo, entre labregos e tinhosos, que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses, porém não o averiguou o historiador, talvez por não valer a pena escolher entre os dois insultos. Berravam os guerreiros como possessos, Deus me perdoe, violentos de palavras e de gestos, e os que defendiam a ideia de continuar viagem para os Santos Lugares afirmavam que muito maiores lucros e proveitos tirariam da extorsão do dinheiro e mercadorias das naus que no mar encontrassem, tanto de Espanha como de África, anacronismo de que só ao historiador se devem pedir contas, falar de naus no século doze, do que da tomada desta cidade de Lisboa, com menos perigo de vidas, que as muralhas são altas e os mouros muitos. Acertara D. Afonso Henriques em cheio quando prognosticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra, palavra que sendo árabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses, flamengos, bolonheses bretões, escoceses e normandos, misturados. Enfim, lá se acomodaram as contrárias partes ao cabo duma disputa verbal que durou todo este dia de S. Pedro, e amanhã, que é o trinta de junho, irão os representantes dos cruzados, agora concordes, informar o rei de que sim senhor o auxiliarão na conquista de Lisboa, a troco dos haveres dos inimigos, que além estão olhando dás muralhas, e outras facilidades directas e indirectas.
Há dois minutos que Raimundo Silva olha, de um modo tão fixo que parece vago, a página onde se encontram consignados estes inabaláveis factos da História não por desconfiar de que nela se esteja ocultando algum último erro, uma qualquer pérfida gralha que tivesse arranjado artes de esconder-se nos refegos duma oração gramatical tortuosa e agora, negaceando, o provoque a coberto também da sua cansada vista e do sono geral que o invade e entorpece. Que o invadia e entorpecia, seriam os tempos verbais exactos. Porque há três minutos que Raimundo Silva está tão deserto como se tivesse tomado uma pastilha de benzedrina, de um resto que ainda aí tem, por trás dos livros, o que sobrou da receita de um médico idiota. Está como fascinado, lê, relê, torna a ler a mesma linha, esta que de cada vez redondamente afirma que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa. Quis o acaso, ou foi antes a fatalidade que estas unívocas palavras ficassem reunidas numa linha só, assim se apresentando com a força de uma legenda, são como um dístico uma inapelável sentença, mas são também como uma provocação, como se estivessem a dizer ironicamente, Faz de mim outra coisa, sé és capaz. A tensão chegou a pontos que Raimundo Silva, de repente, não pôde aguentar mais, levantou-se, empurrando a cadeira para trás, e agora caminha agitado de um lado para o outro no reduzido espaço que as estantes, o sofá e a secretária lhe deixam livre, diz e repete, Que disparate, que disparate, e como se precisasse de confirmar a radical opinião, tornou a pegar na folha de papel, graças ao que podemos nós, agora, que antes havíamos chegado a duvidar, certificarnos de que não há tal disparate, ali se diz mui explicadamente que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa, e a prova de que assim foi que aconteceu iríamos encontrá-la nas páginas seguintes, lá onde se descreve o cerco, o assalto às muralhas, o combate nas ruas e nas casas, a mortandade excessiva, o saque, Por favor, diga-nos o senhor revisor onde está aí o disparate, esse erro que nos escapa, é natural, não beneficiamos da sua grande experiência, às vezes olhamos e não vemos, mas sabermos ler, creia, sim, tem razão, não compreendermos sempre tudo, já se adivinha porquê, o preparo técnico, senhor revisor, o preparo técnico, e também, confessemo-1o, às vezes dá-nos a preguiça de ir ao dicionário ver os significados, o que só nos prejudica. É um disparate, insiste Raimundo Silva como se estivesse a responder-nos, não farei semelhante coisa, e por que a faria, um revisor é uma pessoa séria no seu trabalho, não joga, não é prestidigitador, respeita o que está estabelecido em gramáticas e prontuários, guia-se pelas regras e não as modifica, obedece a um código deontológico não escrito mas imperioso, é um conservador obrigado pelas conveniências a esconder as suas voluptuosidades, dúvidas, se alguma vez as tem, guarda-as para si, muito menos porá um não onde o autor escreveu sim, este revisor não o fará. As palavras que o Dr. Jekill acabou de dizer tentam opor-se a outras que não chegámos a ouvir, essas disse-as Mr. Hyde, não seria preciso mencionar estes dois nomes para percebermos que neste prédio velho do bairro do Castelo assistimos a mais uma luta entre o campeão angélico e o campeão demoníaco, esses dois de que estão compostas e em que se dividem as criaturas, referimo-nos às humanas, sem exclusão dos revisores. Mas esta batalha, desgraçadamente, vai ganhá-la Mr. Hyde, percebe-se pela maneira como Raimundo Silva está a sorrir neste momento, com uma expressão que não esperaríamos dele, de pura malignidade, desapareceram-lhe do rosto todos os traços do Dr. Jekill, é evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como.

Em tantos anos de honrada vida profissional, jamais Raimundo Silva se atrevera, em plena consciência, a infringir o antes citado código deontológico não escrito que pauta as acções do revisor na sua relação com as ideias e opiniões dos autores. Para o revisor que conhece o seu lugar, o autor, como tal, é infalível. Sabe-se, por exemplo, que o revisor de Nietzsche, sendo embora fervoroso crente, resistiu à tentação de introduzir, também ele, a palavra Não numa certa página, transformando em Deus não morreu o Deus está morto do filósofo. Os revisores, se pudessem, se não estivessem atados de pés e mãos por um conjunto de proibições mais impositivo que o código penal, saberiam mudar a face do mundo, implantar o reino da felicidade universal, dando de beber a quem tem sede, de comer a quem tem fome, paz aos que vivem agitados, alegria aos tristes, companhia aos solitários, esperança a quem a tinha perdida, para não falar da fácil liquidação das misérias e dos crimes, porque tudo eles fariam pela simples mudança das palavras, e se alguém tem dúvidas sobre estas novas demiurgias não tem mais que lembrar-se de que assim mesmo foi o mundo feito e feito o homem, com palavras, umas e não outras, para que assim ficasse e não doutra maneira. Faça-se, disse Deus, e imediatamente apareceu feito.

Raimundo Silva não continuará a ler. Está exausto, foram-se-lhe todas as forças naquele Não em que acabou de jogar, além da imaculada reputação que tem merecido, a tranquilidade duma consciência em paz. A partir de hoje viverá para o momento, mais tarde ou mais cedo, mas inevitável, em que alguém lhe aparecerá a pedir contas do erro, poderá ser o justamente enfadado autor, ou o crítico irónico e implacável, ou um leitor atento em carta à editora, ou ainda, amanhã mesmo, o Costa, quando vier buscar as provas, que é bem capaz de aparecer ele próprio aí, com o seu ar heróico e sacrificado, Tive de vir eu, é sempre o melhor, fazer cada um mais do que o seu dever. E se ao Costa lhe der para folhear as provas antes de metê-las na pasta, se nesse acaso lhe saltar aos olhos a página maculada de mentira, se estranhar o aparecimento duma nova palavra em provas que já são quartas, se se der ao trabalho de lê-la e entender o que passou a estar escrito, o mundo, então reemendado, terá vivido diferentemente só um curto instante, o Costa dirá, ainda que hesitando, Senhor Silva, parece haver aqui um erro, e ele fingirá olhar e não terá mais remédio que concordar, Que tolice a minha, não sei como pôde isto ter acontecido, efeitos do sono, foi o que foi. Não será necessário desenhar um deleatur para eliminar a ominosa palavra, bastará riscá-la, simplesmente, como o faria uma criança, o mundo regressará à antiga e tranquila órbita, o que foi continuará a ser, e, daqui em diante, o Costa, ainda que não venha a falar do estranho caso, terá mais um motivo para proclamar que a Produção está por cima de todas as coisas.


Raimundo Silva deitou-se. Está de costas, com as mãos cruzadas atrás da nuca, não sente ainda o frio. Tem dificuldade em reflectir no que fez, sobretudo não consegue reconhecer a gravidade do seu acto, e chega mesmo a surpreender-se por nunca antes lhe ter ocorrido a ideia de alterar o sentido doutros livros que reviu. Num momento que lhe parece ser como se estivesse a desdobrar-se, a afastar-se de si mesmo, observa-se a pensar, e assusta-se um pouco. Depois encolhe os ombros, adia a preocupação que começava a insinuar-se no seu espírito, Veremos, amanhã decidirei se deixo ficar a palavra, ou a retiro. Ia voltar-se para o lado direito, virando as costas à metade vazia da cama, quando percebeu que a sereia de aviso se calara, quem sabe há quanto tempo, Não, ouvi-a quando estava a dizer o discurso do rei, lembro-me exactamente, entre duas frases, o mugido rouco, como de touro que se tivesse perdido entre a névoa, bramindo para o céu branco, longe da manada, é estranho que não haja animais marinhos com vozes capazes de encher a vastidão do mar, ou este largo rio, vou ver como está o céu. Levantou-se, cobriu-se com o roupão de fazenda grossa que, de inverno, sempre estende sobre os cobertores da cama, e foi abrir a janela. O nevoeiro desaparecera, não se acredita que tantas cintilacões tivessem estado ocultas nele, as luzes pela encosta abaixo, as outras do outro lado, amarelas e brancas, projectada sobre a água como trémulos lumes. Está mais frio. Raimundo Silva pensou, pessoanamente. Se eu fumasse, acenderia agora um cigarro, a olhar o rio, pensando como tudo é vago e vário assim, não fumando, apenas pensarei que tudo é vário e vago, realmente, mas sem cigarro, ainda que o cigarro, se o fumasse, por si mesmo exprimisse a variedade e a vaguidade das coisas, como o fumo, se fumasse. O revisor demora-se à janela, ninguém o chamará, Vem para dentro, olha que te constipas, e ele tenta imaginar que o chamam docemente, mas fica ainda um minuto a pensar, vago ele, e vário, e enfim, como se outra vez o tivessem chamado, Vem para dentro, peço-te, condescende em fechar a janela, deita-se sobre o lado direito, à espera. De sono.