O revisor tem nome, chama-se Raimundo. Era já tempo de
sabermos quem seja a pessoa de quem vimos falando indiscretamente, se é que
nome e apelidos alguma vez puderam acrescentar proveito que se visse às
costumadas referências sinaléticas e outros desenhos, idade, altura, peso, tipo
morfológico, tom da pele, cor dos olhos, e dos cabelos, se lisos, crespos ou
ondulados, ou simplesmente perdidos, metal da voz, límpida ou rouca,
gesticulação característica, maneira de andar, porquanto a experiência das
relações humanas tem demonstrado que, sabendo nós isto e às vezes muito mais,
nem o que sabemos nos serve, nem somos capazes de imaginar o que nos falta.
Talvez só uma ruga, ou a forma das unhas, ou a grossura do pulso, ou o traço da
sobrancelha, ou uma cicatriz antiga e invisível, ou apenas o apelido que não
chegara a ser dito, aquele que mais se estima, neste caso Silva, nome completo
Raimundo Silva, assim se apresenta quando tem de o fazer, omitindo o Benvindo
do que não gosta. Ninguém está satisfeito com o que lhe coube em sorte, esta é
uma geral verdade, e Raimundo Silva, que sobre todo o mais deveria apreciar
chamar-se Benvindo, que precisamente diz o que quer dizer, bem-vindo à vida,
meu filho, pois não senhor, não gosta do nome, felizmente, diz ele, que se
perdeu a tradição de decidirem os padrinhos sobre a melindrosa questão da
onomástica, embora reconheça que lhe agrada muito ser Raimundo, por um não sei
quê de solene ou antigo que há na palavra. Dos bens da senhora que foi madrinha
esperavam os pais de Raimundo alguma parte para o futuro do filho, por isso é
que, faltando ao costume que mandava dar ao menino apenas o nome do padrinho,
se acrescentou o nome da paraninfa, passado a masculino. O destino não atende
da mesma maneira a todas as coisas, sabemo-lo bem, mas neste caso alguma
concomitância se há-de reconhecer entre uns bens de que nunca houve benefício e
um nome tão resolutamente repudiado, não se devendo, porém, suspeitar da
existência de uma relação de causa e efeito entre a decepção e a rejeição. Em
Raimundo Benvindo Silva, os motivos, que em momento algum da sua vida haviam
sido de rancorosa frustração, são hoje, uns, meramente estéticos, por não lhe
soar bem a vizinhança dos dois gerúndios e os outros, por assim dizer, éticos e
ontológicos, porque, segundo a sua maneira desenganada de entender, só uma
ironia muito negra pretenderia fazer crer que alguém é realmente bemvindo a
este mundo, o que não contradiz a evidência de alguns se acharem bem instalados
nele.
Da varanda, breve sacada antiga sob um alpendre de madeira
ainda com forro de caixotões, vê-se o rio, e é um imenso mar o que os olhos
alcançam entre raio e raio, desde o traço vermelho da ponte até aos rasos
sapais de Pancas e Alcochete. Uma neblina fria tapa o horizonte, aproxima-o
quase ao alcance da mão, a cidade visível está reduzida a estelado, com a Sé em
baixo, a meia encosta, e em degraus os telhados das casas, descendo até à água
baça, parda, onde uma fugidia esteira branca se abre quando um barco rápido passa,
outros há que navegam dificilmente, pesados, como se estivessem lutando contra
uma corrente de mercúrio, comparação esta que seria bem mais apropriada à
noite, não agora. Raimundo Silva levantou-se menos cedo do que é seu costume,
trabalhara pela noite dentro, um serão longo, arrastado, e quando, de manhã,
abriu a janela, bateu-lhe este nevoeiro na cara, mais fechado do que o vemos a
esta hora, meio-dia, quando o tempo vai ter de decidir se carrega ou alivia, de
acordo com a voz popular. Então as torres da Sé não eram mais do que um borrão
apagado, de Lisboa pouco mais havia que um rumor de vozes e de sons
indefinidos, a moldurada janela, o primeiro telhado, um automóvel ao comprido
da rua. O almuadem, cego, tinha gritado para o espaço duma manhã luminosa,
rubra, e logo azul, a cor do ar entre a terra que aqui está e o céu que nos
cobre, se quisermos acreditar nos insuficientes olhos com que viemos ao mundo,
mas o revisor, que hoje quase tão cego se vê como ele, apenas resmungou, com o
mau humor de quem, tendo dormido mal, andara em trabalhosos sonhos de cerco,
montantes, alfanges e fundas baleares, irritado, ao acordar, por não conseguir
lembrar-se de como eram feitas as tais máquinas de guerra, das fundas é que
falamos, e das profundas falas de quem no sonho estava falaríamos, mas não
caiamos já na tentação de antecipar os factos, agora só devemos lamentar a
oportunidade perdida de saber-se, enfim, que máquinas eram as ditas fundas,
como se armavam e disparavam, que não é tão raro assim revelarem-se nos sonhos
grandes mistérios, e entre eles não incluímos o número da sorte grande,
banalidade suprema e indigna de qualquer sonhador que se respeite. Ainda na
cama, Raimundo Silva, perplexo, perguntava a si mesmo por que razão insistia em
pensar nas fundas baleares, ou fundíbulos, como também se diria, acertando por
igual, Baleares não deve ter nada que ver com as ilhas do mesmo nome, virá de
balas, e balas sabemos o que são, projécteis, pedras que as máquinas atirariam
contra os muros e por cima deles, para caírem sobre as casas e a gente de
dentro, espavorida, mas balas não é palavra daquele tempo, as palavras não
podem ser levianamente transportadas de cá para lá e de lá para cá, cuidado,
aparece logo alguém que diz, Não percebo. Adormeceu, esteve assim dez minutos,
e ao despertar de novo, agora lúcido, afastou do pensamento as máquinas que
teimavam em voltar e deixou que as imagens das espadas e das cimitarras lhe
ocupassem perigosamente o espírito, sorriu na penumbra do quarto porque bem
sabia que se tratava de evidentes símbolos fálicos, é certo que atraídos ao
sonho pela História do Cerco de Lisboa, mas em si enraizados, quem o duvida, se
armas de ponta e fio têm raízes, cravadas, sim, estarão, bastava olhar a cama
vazia a seu lado para compreender tudo. Deitado de costas, cruzou os braços
sobre os olhos, murmurou sem nenhuma originalidade, Mais um dia, não ouvira o
almuadem, como se arranjaria naquela religião um mouro surdo para não faltar às
orações, sobretudo a da manhã, decerto pediria a um vizinho, Em nome de Alá,
bate à porta com força e não pares de bater enquanto eu não vier abrir. A
virtude não é tão fácil como o vício, mas pode ser ajudada.
Nesta casa não vive mulher. Duas vezes por semana vem uma de
fora, mas não se pense que aquele lugar vago da cama tem que ver com a
bissemanal visita, são diferentes precisões, ficando desde já explicado que
para o alívio das importunações mais imperiosas da carne o revisor desce à
cidade, contrata, satisfaz-se e paga, sempre teve de pagar, que remédio, mesmo
quando não se achou satisfeito, que o verbo não tem um sentido só, como se crê
vulgarmente. A mulher que vem de fora é o que chamamos a-dias, trata-lhe da
roupa, arruma e limpa o mais substancial da casa, põe a cozer uma grande panela
de sopa, a mesma, feijão branco e hortaliça, que dará para alguns dias, não é
que ao revisor não caiam bem outras variedades, mas reserva-as para o
restaurante, aonde vai uma vez por outra, sem exageros de assiduidade. Não há
pois mulher nesta casa, nem nunca a houve. O revisor Raimundo Benvindo Silva é
solteiro e não pensa em casar-se, Tenho mais de cinquenta anos, diz ele, quem é
que me iria querer agora, ou a quem iria eu querer, ainda que, como todo o
mundo sabe, seja muito mais fácil querer do que ser querido, e este último
comentário, que se diria ser como o eco duma dor passada, agora tornada em
sentença para lição dos confiados, este comentário, mais a pergunta que o
precedeu, fá-los ele a si próprio, porque é homem bastante reservado para não
andar aí a derramar-se por amigos e conhecidos, que os terá, embora,
provavelmente, não vá ser preciso convocá-los ao relato, pelo jeito que ele
leva. Não tem irmãos, os pais morreram-lhe nem cedo nem tarde, a família, se
resta alguma, anda dispersa, notícias dela, quando chegam, pouco adiantam à
tranquilidade de afinal não a ter, a alegria passou, o luto não vale a pena, e
a única coisa que verdadeiramente sente próxima de si é a prova que estiver a
ler, enquanto dura, o erro que é preciso desemboscar, e também, quando calha,
uma preocupação que não teria de ser sua, lá se avenham os autores, que para
isso levam as honras, corno este desassossego agora das fundas baleares que lhe
voltou ao pensamento e não quer sair. Raimundo Silva levantou-se, enfim,
procurou com os pés as babuchas, Chinelos, chinelos, que é a palavra cristã,
vinda de Génova e aqui, também ela, passada a masculino, e entrou no escritório
enquanto vestia o roupão por cima do pijama. De longe em longe, a mulher a-
dias faz-lhe solene declaração sobre a necessidade de limpar o pó dos livros,
que, sobretudo nas prateleiras altas, onde se arrumam os que só muito raramente
são consultados, mais parece ser o depósito aluvial duma acumulação de séculos,
um pó negro, como de cinza, que não se sabe donde vem, de tabaco não pode ser,
que o revisor há muito que deixou de fumar, é a poeira do tempo, e está tudo
dito. Sem que se saiba bem porquê, a tarefa é sempre adiada, o que, calcula-se,
não desagrada à ancilar pessoa, aos seus próprios olhos absolvida pela
intenção, e que não perde nenhuma ocasião de dizer, Mas olhe que a culpa não é
minha.
Raimundo Silva procura nos dicionários e enciclopédias, vê em
Armas, em Idade Média, busca Máquinas de Guerra, e encontra as descrições
vulgares do arsenal da época, rudimentar, basta dizer que então não se
conseguia matar um homem escolhido que estivesse a duzentos passos de
distância, forte perda, nem nada que se comparasse, e para a caça, se não havia
à mão arco ou besta, tinha o caçador de acercar-se aos braços do urso ou aos
galhos do cervo ou aos dentes do javardo, hoje o que ainda conserva parecenças
com tão arriscadas aventuras é a corrida de touros, os toureiros são os últimos
homens antigos. Em nenhum lugar se explica nestes potentes volumes, nenhum
desenho dá uma ideia ao menos aproximada do que fosse aquela mortífera fábrica
que tanto amedrontava os mouros, mas esta ausência de informação já não é
novidade para Raimundo Silva, agora o que ele quer descobrir é por que se
chamava balear à funda, e vai de livro em livro, rebusca, impacienta-se, até
que, finalmente, o precioso, o inestimável Bouillet lhe ensina que os habitantes
das Baleares eram considerados, na Antiguidade, os melhores arqueiros do mundo
conhecido, que era, evidentemente, todo, e que daí tinham tomado as ilhas o
nome, pois em grego atirar diz-se ballô, não há nada mais claro, qualquer
simples revisor é capaz de ver a etimológica linha recta que liga ballô a
Baleares, o erro, tratando-se da funda, está em ter-se escrito balear quando
baleárica é que seria correcto, senhor doutor. Mas Raimundo Silva não emendará,
o uso faz alguma lei, quando a não fez toda, e, acima de tudo, primeiro
mandamento do decálogo do revisor que aspire à santidade, aos autores deve-se
evitar sempre o peso de vexações. Arrumou o livro, abriu a janela, e foi então
que o nevoeiro lhe deu na cara, denso, cerradíssimo, se no lugar das torres da
Sé ainda estivesse a almádena da mesquita maior, decerto não a poderia ver, por
tão delgada que era, aérea, imponderável quase, e então, se essa fosse a hora,
a voz do almuadem desceria do céu branco, directamente de Alá, por uma vez
louvador em causa própria, o que de todo não poderíamos censurar-lhe porque,
sendo quem é, com certeza se conhece bem.
Ia a manhã em meio quando o telefone tocou. Era da editora,
queriam saber notícias sobre o andamento da revisão, quem começou por falar foi
a Mónica da Produção que tem, como todos os que trabalham nesse sector o hábito
da menção majestática, assim, Senhor Silva, disse a Produção pergunta, parece
que estamos a ouvir, Sua Alteza Real quer saber, e repete como os arautos
repetiam A Produção pergunta pelas provas, se falta muito para entregá-las, mas
ela, a Mónica, ainda não percebeu, depois de tanto tempo de vida em parte
comum, que Raimundo Silva detesta que lhe chamem Silva sem mais nada, não que o
aborrece a vulgaridade do nome, que anda pela dos Santos e Sousas, mas porque
lhe faz falta o Raimundo, por isso respondeu, seco, ferindo injustamente a
pessoa delicada que Mónica é, Diga lá que amanhã está pronto o trabalho Eu digo,
senhor Silva, eu digo, e mais não acrescentou porque o telefone foi tomado
bruscamente por outra pessoa, Fala Costa, Aqui Raimundo Silva, pôde o revisor
responder, Já sei, é que as provas preciso delas ainda hoje, tenho a
programação estoirada, se não meto o livro a imprimir amanhã de manhã arma-se
um sarilho dos diabos, e tudo por causa da revisão, Para este tipo de livro,
assunto, número de páginas, o tempo de revisão está dentro da média, Não me
venha com médias, quero o trabalho acabado, a voz do Costa subira, sinal de que
deveria estar por perto um chefe um director, talvez o próprio patrão. Raimundo
Silva inspirou fundo, argumentou, Revisões feitas à pressa dão ocasião a erros,
E livros que se atrasam na saída significam prejuízo não há dúvida, o patrão
assiste à conversa, mas o Costa acrescenta, Vale mais deixar passar duas
gralhas do que perder um dia de vendas, fique sabendo, não, o patrão não está,
nem director, nem chefe, o Costa não admitiria com tanta naturalidade erros de
revisão em proveito da rapidez, É uma questão de critérios, respondeu Raimundo
Silva e o Costa, implacável, Não me fale de critérios, conheço bem o seu, o meu
é muito simples, preciso dessas provas para amanhã, sem falta, arranje-se como
quiser, a responsabilidade é sua, Já tinha dito à Mónica que o trabalho estará
pronto amanhã, Amanhã tem ele que entrar na máquina, Entrará, pode mandar
buscá-lo às oito horas, É cedo de mais, a essa hora ainda isto está fechado,
Então mande buscar quando quiser, não posso continuar aqui a perder tempo, e
desligou. Raimundo Silva está acostumado, não toma muito a peito as
impertinências do Costa, más-criações sem maldade, coitado do Costa, que não
pára de falar da Produção, A Produção é que se trama sempre, diz ele, sim
senhor, os autores, os tradutores, os revisores, os capistas, mas se não fosse
cá a Produçãozinha, eu sempre queria ver de que é que lhes adiantava a
sapiência, uma editora é como uma equipa de futebol, muito floreado lá na
frente, muito passe, muito drible, muito jogo de cabeça, mas se o guarda-redes
for daqueles paralíticos ou reumáticos vai-se tudo quanto Marta fiou, adeus
campeonato, e o Costa sintetiza, algébrico desta vez, A Produção está para a
editora como o guarda-redes está para a equipa. O Costa tem razão.
Chegando a hora do almoço, Raimundo Silva fará uma omeleta de
três ovos com chouriço, excesso dietético que o seu fígado por enquanto ainda
aguenta. Com um prato de sopa, uma laranja, um copo de vinho, um café para
rematar, de mais não necessita quem tem esta vida sedentária. Lavou
cuidadosamente a louça, gasta mais água e detergente do que o preciso,
enxugou-a, arrumou-a no armário da cozinha, é um homem ordenado, um revisor no
absoluto sentido da palavra, se é que alguma palavra pode existir e continuar a
existir levando consigo um sentido absoluto, para sempre, uma vez que o
absoluto não pede menos. Antes de voltar ao trabalho foi ver como estava o
tempo, limpara um pouco, a outra margem do rio já começa a ser visível, apenas
uma linha escura, um borrão alongado, o frio não parece ter diminuído. Sobre a
secretária estão quatrocentas e trinta e sete provas de página, em duzentas e
noventa e três já foi feita a verificação das emendas, o que falta não é coisa
que assuste, o revisor tem a tarde toda, e a noite, sim, também a noite, porque
é seu profissional escrúpulo fazer sempre uma derradeira leitura, seguida, como
um leitor comum, finalmente o prazer e a felicidade de compreender de uma
maneira livre, solta, sem desconfianças, tinha muita razão aquele autor que
perguntou um dia, Aos olhos de um falcão, como seria a pele de Julieta, ora, o
revisor em sua agudíssima tarefa, é precisamente o falcão, mesmo quando já se
lhe for cansando a vista, porém, em chegando a hora da leitura final, é tal
qual Romeu quando olhou pela primeira vez Julieta, inocente, trespassado de
amor.
Neste caso da História do Cerco de Lisboa, já sabe Romeu que
não encontrará motivos bastantes de embevecimento, embora Raimundo Silva, na
conversação preambular e algo labiríntica sobre as emendas dos erros e os erros
das emendas, tenha dito ao autor que gostava do livro, e, de facto, não mentiu.
Mas, que é gostar, perguntamos nós entre o muito gostar e o nada gostar está o
menos e o pouco, e não chega escrevê-lo para sabermos que partes de sim, de não
e de talvez comporta tudo aquilo, seria preciso proferi-lo em voz alta, o
ouvido capta a vibração última, capta sempre, e quando nos enganamos ou nos
deixamos enganar é só porque não demos ao ouvido ouvidos suficientes.
Reconheça-se, porém, que aquele diálogo nada teve de enganador neste ponto,
logo se percebeu que se tratava dum gostar sem cor, alheado, disse Raimundo
Silva aquela palavra morna, Gosto, e ainda mal acabou de ser dita já está fria.
Em quatrocentas e trinta e sete páginas não se encontrou um facto novo, uma
interpretação polémica, um documento inédito, sequer uma releitura. Apenas mais
uma repetição das mil vezes contadas e exaustas histórias do cerco, a descrição
dos lugares, as falas e as obras da real pessoa, a chegada dos cruzados ao
Porto e sua navegação até entrarem no Tejo, os acontecimentos do dia de S.
Pedro, o ultimato à cidade, os trabalhos do sítio, os combates e os assaltos a
rendição, finalmente o saque, die vero quo omnium sanctorum celebratur ad
laudem et honorem nominis Christi ET sanctissimae ejus genitricis purificatum
est templum, dizem que escreveu Osberno, entrado na imortalidade das letras
graças ao cerco e tomada de Lisboa e às histórias que deles se contaram,
significando este latim, traduzido por cima do ombro de quem sabe, que no Dia de
Todos os Santos passou a corrupta mesquita a puríssima igreja católica, e agora
sim, agora é que o almuadem nunca mais poderá chamar os crentes à oração de
Alá, vão substituí-lo por um sino ou sineta depois de terem substituído um deus
por outro, feliz caso teria sido terem-no deixado ir, É cego, coitado, salvo se
de ira sanguinária cego ia precisamente o cruzado Osberno, só igual de nome,
quando viu à frente da sua espada um mouro velho que nem para fugir tinha já
forças, ali espojado no chão, agitando as pernas e os braços como se intentasse
afundar-se pela terra dentro, este medo real em vez do outro, imaginário, e
há-de consegui-lo, tão certo como estar vivo ainda, mas não por muito tempo mais
dizemos nós, nem sozinho poderá, porque estará morto então, pensou o revisor,
por enquanto estão a ser abertas as valas comuns. A intervalos, vindo do rio,
ouve-se um mugido rouco de sereia, está assim desde manhã, a avisar a
navegação, mas só neste instante é que Raimundo Silva deu por ele, talvez por
causa do grande e súbito silêncio que dentro de si se fez.
É janeiro, anoitece cedo. A atmosfera do escritório pesa,
abafada. As portas estão fechadas. Para defender-se do frio, o revisor tem uma
manta sobre os joelhos, o calorífero mesmo ao lado da secretária, quase a
escaldar-lhe os tornozelos. Já se percebeu que a casa é antiga, sem conforto,
de um tempo espartano e bronco, quando sair para a rua, na altura dos frios
maiores, ainda era o melhor remédio para quem não dispusesse senão de um corredor
gélido onde aquecer o corpo em pequenos exercícios de marcha. Mas, nesta última
página da História do Cerco de Lisboa pode Raimundo Silva encontrar a ardente expressão
de um patriotismo fervoroso, que decerto saberá reconhecer se a vida monótona e
paisana não lhe entibiou o seu próprio, agora se arrepiará, sim, mas daquele
sopro único que vem da alma dos heróis, repare-se no que escreveu o
historiador, No alto do castelo o crescente muçulmano desceu pela derradeira
vez e, definitivamente, para sempre, ao lado da cruz que anunciava ao mundo o
baptismo santo da nova cidade cristã, elevou-se lento no azul do espaço,
beijado da luz, sacudido das brisas, a despregar-se ovante no orgulho da vitória,
o pendão de D. Afonso Henriques, as quinas de Portugal, merda, e que não se cuide
que a má palavra a dirige o revisor ao nacional emblema, é antes o legítimo
desabafo de quem, tendo sido ironicamente repreendido por ingénuos erros da
imaginação, vai ter de consentir que passem a salvo outros não seus, quando o
que lhe está a apetecer, e com justo direito, é lançar nas margens do papel uma
chuva de indignados deleatures, porém, já sabemos, não o fará, que com emendas
deste calibre ficaria avexado o autor, Reduza-se o sapateiro à observação da
gáspea, que só para isso é que lhe pagam, estas foram as impacientes palavras
de Apeles, definitivas. Ora, estes erros não são como os das fundas, simples
bagatela entre uma talvez-sim e uma talvez-não, que em boa verdade tanto nos dá
hoje que lhes chamem baleáricas como baleares, o que de todo não se deveria
permitir é esta insensatez de falar de quinas em tempo de D. Afonso o Primeiro,
quando só no reinado de seu filho Sancho foi que elas tomaram lugar na
bandeira, e ainda assim dispostas não se sabe como, se em cruz ao centro, se uma
aí e as outras cada qual em seu canto, se ocupando o campo todo, esta, segundo
as autoridades mais sérias, a hipótese forte. Nódoa grave, mas não única, que
para todo o sempre ficará manchando a página final da História do Cerco de
Lisboa, sobre o demais tão ricamente instrumentada de tubas retumbantes, tão de
tambores, tão de retórico arrebato, com as tropas formadas em parada, assim as
imaginamos, pé-terra infantes e cavaleiros, assistindo ao arriar do estandarte
abominável e ao hastear da insígnia cristã e lusitana, gritando numa só voz
Viva Portugal e batendo com as espadas nos escudos, em enérgica algazarra
militar, e depois o desfile perante o rei, que está calcando aos pés,
vindicativamente, além do sangue mouro, o crescente muçulmano, segundo erro e
supremo disparate, que nunca tal bandeira foi erguida sobre os muros de Lisboa,
pois, como o historiador não deveria ignorar, crescente em bandeira foi
invenção do império otomano, dois ou três séculos mais tarde. Raimundo Silva
ainda pousou o bico da esferográfica sobre as quinas, mas logo pensou que se
dali as tirasse, e ao crescente, seria como um terramoto na página, tudo viria
abaixo, história sem remate a condizer com a grandeza do instante, e esta lição
é muito boa para instruir-se a gente sobre a importância duma coisa que, à
primeira vista, não passa de um pedaço de pano de uma ou várias cores com
figuras recortadas também diversamente coloridas, que tanto podem ser castelos
como estrelas, ou leões, ou unicórnios, ou águias, ou sóis, ou foices, ou
martelos, ou chagas, ou rosas, ou sabres, ou machetes, ou compassos, ou rodas,
ou cedros, ou elefantes, ou bois, ou barretes, ou mãos, ou palmeiras, ou
cavalos, ou candelabros, eu que sei, perdese uma pessoa neste museu se não leva
guia nem catálogo, pior ainda se às bandeiras se lembrar de juntar os brasões,
que tudo é uma família só, então será um nunca mais acabar de flores-de-lis, de
conchas, de fivelas, de leopardos, de abelhas, de guisos, de árvores, de
báculos, de mitras, de espigas, de ursos, de salamandras, de garças, de anéis,
de patos, de pombos, de javalis, de virgens, de pontes, de corvos e caravelas,
de lanças, de livros, sim, até livros, a Bíblia, o Corão, o Capital, adivinhe
quem puder, e mais, e mais, de tudo isto se podendo concluir que os homens são
incapazes de dizer quem são se não puderem alegar que são outra coisa, motivo
afinal suficiente, neste caso, para que aí deixemos ficar o episódio das
bandeiras, a decaída e a exaltada, mas cientes de que tudo não passa de
mentira, útil até certo ponto, ó máxima vergonha, pois que não tivemos a
coragem de emendá-la nem saberíamos pôr no seu lugar a verdade substancial,
aspiração sobre todas excessiva, porém inextinguível, que Alá se amerceie de
nós.
Pela primeira vez em tantos anos de ofício minucioso,
Raimundo Silva não fará leitura final e completa de um livro. São, como já foi
dito, quatrocentas e trinta e sete páginas fortíssimas de notas, para ler tudo
teria de ficar acordado a noite inteira, ou pouco menos, e não lhe apetece o
martírio, tomou-se de resoluta antipatia pela obra e pelo autor dela, amanhã
irão dizer os leitores inocentes e repetirá a juventude das escolas que a mosca
tem quatro patas, por assim o ter afirmado Aristóteles, e no próximo centenário
da tomada de Lisboa aos mouros, no ano de dois mil e quarenta e sete, se Lisboa
houver ainda e portugueses nela, não faltará um presidente para evocar aquela
suprema hora em que as quinas, ovantes no orgulho da vitória, tomaram o lugar
do ímpio crescente no céu azul da nossa formosa cidade.
No entanto, exige-lhe a consciência profissional que, ao
menos, vá percorrendo devagar as páginas, os olhos expertos vagando sobre as
palavras, confiado em que, variando assim o nível de atenção, qualquer erro
menor de alçada sua se deixaria surpreender, como sombra que o movimento do
foco luminoso subitamente deslocou, ou aquele conhecido relance da visão
lateral que capta, no último instante, uma imagem em fuga. Importa nada saber
se Raimundo Silva conseguiu limpar de todo as enfadonhas laudas, o que sim
valerá a pena é observá-lo enquanto relê o discurso que D. Afonso Henriques fez
aos cruzados, conforme a versão dita de Osberno, ali traduzida do latim pelo
próprio autor da História, que não se fia das lições alheias, mormente
tratando-se de matéria de tal responsabilidade, nem mais nem menos a primeira
fala averiguada do nosso rei fundador, que outra, aliás, não se conhece
bastantemente autorizada. Para Raimundo Silva, o discurso é, todo ele, de ponta
a ponta, uma absurdidade, não que se permita duvidar do rigor da tradução, que
não está a latinaria entre as suas prendas de revisor apenas médio, mas porque
não se pode, é que não se pode mesmo acreditar que da boca deste rei Afonso,
sem prendas, ele, de clérigo, tenha saído a complicada fala, bem mais à
semelhança dos sermões arrebicados que os frades hão-de dizer daqui a seis ou
sete séculos do que dos curtos alcances duma língua que ainda agora começava a
balbuciar. Estava o revisor, assim, sorrindo escarninhamente, quando de súbito
lhe deu o coração um salto, afinal, se Egas Moniz foi tão bom aio quanto dele
proclamam os anais, se não nasceu só para levar o aleijadinho a Carquere ou,
mais tarde, para ir a Toledo de baraço ao pescoço, então seguramente não teria
faltado ao seu pupilo com suficientes máximas cristãs e políticas, e sendo o
latim, por excelência, o veículo destes aperfeiçoamentos, é de supor que o real
menino, além de explicar-se naturalmente em galego, latinizaria o quantum satis
para poder declamar, chegada a hora, perante tantos e tão cultos cruzados
estrangeiros, a arenga supracitada, uma vez que eles, de línguas, não
entenderiam então mais do que a sua de berço e iguais rudimentos da outra, com
a ajuda dos frades intérpretes. Saberia portanto D. Afonso Henriques latim e
não precisou de dar homem por si na célebre assembleia, quiçá, até, tenha sido
ele o próprio autor das célebres palavras, hipótese muito plausível em pessoa
que, por seu mesmo punho, e no mesmo latim, tinha escrito a História da
Conquista de Santarém, consoante gravemente no-lo explica Barbosa Machado na
sua Bibliotheca Lusitana, mais nos informando que o manuscrito, ao tempo, se
conservava no arquivo do Real Convento de Alcobaça, no fim de um Livro de S.
Fulgêncio. Há que dizer que o revisor não crê em uma só palavra do que os seus
olhos estão vendo, sobeja-lhe o cepticismo, ele próprio já o declarou, e para
cortar a direito, como também para distrair-se dos enfados desta leitura
obrigada, foi à fonte limpa das Historiografias modernas, buscou e encontrou,
bem me queria a mim parecer, Machado, crédulo, copiou sem conferir o que haviam
escrito Frei Bernardo de Brito e Frei António Brandão, é assim que se arranjam
os equívocos históricos, Fulano diz que Beltrano disse que de Cicrano ouviu, e
com três autoridades dessas se faz uma história, sendo afinal certo que a da
Conquista de Santarém a escreveu um cónego regrante de Santa Cruz de Coimbra,
de quem nem o simples nome ficou para tomar na biblioteca o lugar a que tem
justo direito e dela retirar o rei usurpador.
Raimundo Silva está de pé, tem posta sobre os ombros a manta,
mas de jeito que uma ponta arrasta pelo chão quando se move, e em voz alta lê,
como um arauto lançando as proclamas, isto é, o discurso que aos cruzados fez
el-rei nosso senhor, por esta guisa, Sabemos bem, e temos diante dos olhos, que
vós haveis de ser homens fortes, denodados e de grande destreza, e, em verdade,
a vossa presença não diminuiu à nossa vista o que de vós nos dissera a fama.
Não vos reunimos aqui para saber o quanto a vós, homens de tanta riqueza, seria
bastante prometer para que, enriquecidos com as nossas dádivas, ficásseis conosco
para o cerco desta cidade. Dos mouros, sempre inquietados, nunca pudemos acumular
tesouros, com os quais acontece algumas vezes não se poder viver em segurança. Mas,
porque não queremos que ignoreis os nossos recursos e quais as nossas intenções
para convosco, entendemos que nem por isso deveis desprezar a nossa promessa,
pois consideramos como sujeito ao vosso domínio tudo o que a nossa terra
possui. Duma coisa porém estamos certos, e é que a vossa piedade vos convidará
mais a este trabalho e ao desejo de realizar tão grande feito, do que vos há-de
atrair à recompensa a promessa do nosso dinheiro. Ora, para que com a algazarra
dos vossos homens não seja perturbado o que vos disser, escolhei quem vós
quiserdes, a fim de que, retirados à parte uns e outros, benigna e
sossegadamente determinemos em conjunto a causa da nossa promessa, e resolvamos
sobre aquilo que vos expomos, para depois ser explicado a todos em comum o que
tivermos resolvido, e assim, dado o assentimento de ambas as partes, com
juramento e garantias certas, seja isso ratificado para interesse de Deus.
Não este discurso não é obra de rei principiante, sem
excessiva experiência diplomática, aqui tem dedo, mão e cabeça de eclesiástico
maior, talvez o próprio bispo do Porto, D. Pedro Pitões, e seguramente o
arcebispo de Braga, D. João Peculiar, que juntos e concertados tinham logrado
persuadir os cruzados, de passagem no Douro, a virem ao Tejo ajudar à conquista,
dizendo-lhes, por exemplo, Ao menos ouçam as razões que a favor da prestação de
auxílio temos para dar-lhes, à vista da mercadoria. E tendo a viajem do Porto
até Lisboa durado três dias, não é preciso ser dotado duma imaginação
prodigiosa para supor que os dois prelados, de caminho vieram fazendo o
rascunho, com o fito de adiantar trabalho, ponderando os argumentos, insinuando
muito, acautelando o possível, com promessas liberalíssimas envolvidas em
prudentes reservas mentais, não esquecendo a lisonja, recurso embaidor que
geralmente frutifica em mil por um, mesmo se o terreno é sáfaro e pouco destro
o semeador. Raimundo Silva, afogueado, deixa cair a manta com teatral ademane,
sorri sem alegria, Isto não é discurso em que se acredite, mais parece lance
shakespeariano que de bispos arrabaldinos, e regressa à secretária senta-se,
abana a cabeça sucumbidamente, Pensarmos nós que nunca viremos a saber que
palavras disse realmente D. Afonso Henriques aos cruzados, ao menos bons dias,
e que mais, e que mais, e a claridade ofuscante desta evidência, não poder
saber, aparece-lhe, se súbito, como uma infelicidade, seria capaz de renunciar
a alguma coisa, não se pergunta quê nem quanto, a alma, se a há, os bens, se os
tivesse, para encontrar, de preferência nesta parte de Lisboa onde vive e que é
precisamente um papel era a cidade toda, um pergaminho, um papiro, avulso, um
recorte de jornal, uma gravação, podendo ser, ou uma lápide insculpida, que
registasse a vera fala, o original, por assim dizer, porventura menos subtil em
arte dialéctica do que esta versão amaneirada, onde justamente faltam as fortes
palavras dignas da ocasião.
O jantar foi rápido, simples, ainda mais ligeiro que o
almoço, mas Raimundo Silva bebeu duas chávenas de café em vez de uma, para se
defender do sono que não tardaria a ameaçar, vista a mal dormida noite passada.
Num ritmo certo, as páginas vão mudando de lugar, sucedem-se os quadros e os
episódios, agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande
discórdia que se levantou entre os cruzados, depois da arenga real, sobre se
deveriam, ou não, ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa, se ficariam aqui
ou seguiriam, como previsto, para a Terra Santa, onde os estava esperando Nosso
Senhor Jesus Cristo, sob os ferros turcos. Argumentavam aqueles a quem seduzia
a ideia de ficar que lançar fora da cidade a estes mouros e fazê-la cristã
seria também serviço de Deus, contestavam os contrários que, se esse era
serviço de Deus, serviço menor seria, e que cavaleiros tão principais como ali
todos se prezavam de ser tinham por obrigação acudir aonde mais trabalhosa
fosse a obra, não neste cu do mundo, entre labregos e tinhosos, que uns deviam
ser os mouros e outros os portugueses, porém não o averiguou o historiador, talvez
por não valer a pena escolher entre os dois insultos. Berravam os guerreiros
como possessos, Deus me perdoe, violentos de palavras e de gestos, e os que
defendiam a ideia de continuar viagem para os Santos Lugares afirmavam que
muito maiores lucros e proveitos tirariam da extorsão do dinheiro e mercadorias
das naus que no mar encontrassem, tanto de Espanha como de África, anacronismo
de que só ao historiador se devem pedir contas, falar de naus no século doze,
do que da tomada desta cidade de Lisboa, com menos perigo de vidas, que as
muralhas são altas e os mouros muitos. Acertara D. Afonso Henriques em cheio
quando prognosticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra, palavra
que sendo árabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de
colonenses, flamengos, bolonheses bretões, escoceses e normandos, misturados.
Enfim, lá se acomodaram as contrárias partes ao cabo duma disputa verbal que
durou todo este dia de S. Pedro, e amanhã, que é o trinta de junho, irão os
representantes dos cruzados, agora concordes, informar o rei de que sim senhor
o auxiliarão na conquista de Lisboa, a troco dos haveres dos inimigos, que além
estão olhando dás muralhas, e outras facilidades directas e indirectas.
Há dois minutos que Raimundo Silva olha, de um modo tão fixo
que parece vago, a página onde se encontram consignados estes inabaláveis
factos da História não por desconfiar de que nela se esteja ocultando algum
último erro, uma qualquer pérfida gralha que tivesse arranjado artes de
esconder-se nos refegos duma oração gramatical tortuosa e agora, negaceando, o
provoque a coberto também da sua cansada vista e do sono geral que o invade e
entorpece. Que o invadia e entorpecia, seriam os tempos verbais exactos. Porque
há três minutos que Raimundo Silva está tão deserto como se tivesse tomado uma pastilha
de benzedrina, de um resto que ainda aí tem, por trás dos livros, o que sobrou
da receita de um médico idiota. Está como fascinado, lê, relê, torna a ler a
mesma linha, esta que de cada vez redondamente afirma que os cruzados
auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa. Quis o acaso, ou foi antes a
fatalidade que estas unívocas palavras ficassem reunidas numa linha só, assim
se apresentando com a força de uma legenda, são como um dístico uma inapelável
sentença, mas são também como uma provocação, como se estivessem a dizer
ironicamente, Faz de mim outra coisa, sé és capaz. A tensão chegou a pontos que
Raimundo Silva, de repente, não pôde aguentar mais, levantou-se, empurrando a
cadeira para trás, e agora caminha agitado de um lado para o outro no reduzido
espaço que as estantes, o sofá e a secretária lhe deixam livre, diz e repete,
Que disparate, que disparate, e como se precisasse de confirmar a radical
opinião, tornou a pegar na folha de papel, graças ao que podemos nós, agora,
que antes havíamos chegado a duvidar, certificarnos de que não há tal
disparate, ali se diz mui explicadamente que os cruzados auxiliarão os portugueses
a tomar Lisboa, e a prova de que assim foi que aconteceu iríamos encontrá-la nas
páginas seguintes, lá onde se descreve o cerco, o assalto às muralhas, o
combate nas ruas e nas casas, a mortandade excessiva, o saque, Por favor,
diga-nos o senhor revisor onde está aí o disparate, esse erro que nos escapa, é
natural, não beneficiamos da sua grande experiência, às vezes olhamos e não
vemos, mas sabermos ler, creia, sim, tem razão, não compreendermos sempre tudo,
já se adivinha porquê, o preparo técnico, senhor revisor, o preparo técnico, e
também, confessemo-1o, às vezes dá-nos a preguiça de ir ao dicionário ver os
significados, o que só nos prejudica. É um disparate, insiste Raimundo Silva
como se estivesse a responder-nos, não farei semelhante coisa, e por que a
faria, um revisor é uma pessoa séria no seu trabalho, não joga, não é
prestidigitador, respeita o que está estabelecido em gramáticas e prontuários,
guia-se pelas regras e não as modifica, obedece a um código deontológico não
escrito mas imperioso, é um conservador obrigado pelas conveniências a esconder
as suas voluptuosidades, dúvidas, se alguma vez as tem, guarda-as para si,
muito menos porá um não onde o autor escreveu sim, este revisor não o fará. As
palavras que o Dr. Jekill acabou de dizer tentam opor-se a outras que não chegámos
a ouvir, essas disse-as Mr. Hyde, não seria preciso mencionar estes dois nomes para
percebermos que neste prédio velho do bairro do Castelo assistimos a mais uma
luta entre o campeão angélico e o campeão demoníaco, esses dois de que estão
compostas e em que se dividem as criaturas, referimo-nos às humanas, sem
exclusão dos revisores. Mas esta batalha, desgraçadamente, vai ganhá-la Mr.
Hyde, percebe-se pela maneira como Raimundo Silva está a sorrir neste momento,
com uma expressão que não esperaríamos dele, de pura malignidade,
desapareceram-lhe do rosto todos os traços do Dr. Jekill, é evidente que acabou
de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica
e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu,
que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não,
agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os
portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser
verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos
verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e
como.
Em tantos anos de honrada vida profissional, jamais Raimundo
Silva se atrevera, em plena consciência, a infringir o antes citado código
deontológico não escrito que pauta as acções do revisor na sua relação com as
ideias e opiniões dos autores. Para o revisor que conhece o seu lugar, o autor,
como tal, é infalível. Sabe-se, por exemplo, que o revisor de Nietzsche, sendo
embora fervoroso crente, resistiu à tentação de introduzir, também ele, a palavra
Não numa certa página, transformando em Deus não morreu o Deus está morto do
filósofo. Os revisores, se pudessem, se não estivessem atados de pés e mãos por
um conjunto de proibições mais impositivo que o código penal, saberiam mudar a
face do mundo, implantar o reino da felicidade universal, dando de beber a quem
tem sede, de comer a quem tem fome, paz aos que vivem agitados, alegria aos
tristes, companhia aos solitários, esperança a quem a tinha perdida, para não
falar da fácil liquidação das misérias e dos crimes, porque tudo eles fariam
pela simples mudança das palavras, e se alguém tem dúvidas sobre estas novas
demiurgias não tem mais que lembrar-se de que assim mesmo foi o mundo feito e
feito o homem, com palavras, umas e não outras, para que assim ficasse e não
doutra maneira. Faça-se, disse Deus, e imediatamente apareceu feito.
Raimundo Silva não continuará a ler. Está exausto,
foram-se-lhe todas as forças naquele Não em que acabou de jogar, além da
imaculada reputação que tem merecido, a tranquilidade duma consciência em paz.
A partir de hoje viverá para o momento, mais tarde ou mais cedo, mas
inevitável, em que alguém lhe aparecerá a pedir contas do erro, poderá ser o
justamente enfadado autor, ou o crítico irónico e implacável, ou um leitor atento
em carta à editora, ou ainda, amanhã mesmo, o Costa, quando vier buscar as
provas, que é bem capaz de aparecer ele próprio aí, com o seu ar heróico e
sacrificado, Tive de vir eu, é sempre o melhor, fazer cada um mais do que o seu
dever. E se ao Costa lhe der para folhear as provas antes de metê-las na pasta,
se nesse acaso lhe saltar aos olhos a página maculada de mentira, se estranhar
o aparecimento duma nova palavra em provas que já são quartas, se se der ao
trabalho de lê-la e entender o que passou a estar escrito, o mundo, então
reemendado, terá vivido diferentemente só um curto instante, o Costa dirá,
ainda que hesitando, Senhor Silva, parece haver aqui um erro, e ele fingirá
olhar e não terá mais remédio que concordar, Que tolice a minha, não sei como
pôde isto ter acontecido, efeitos do sono, foi o que foi. Não será necessário
desenhar um deleatur para eliminar a ominosa palavra, bastará riscá-la,
simplesmente, como o faria uma criança, o mundo regressará à antiga e tranquila
órbita, o que foi continuará a ser, e, daqui em diante, o Costa, ainda que não
venha a falar do estranho caso, terá mais um motivo para proclamar que a
Produção está por cima de todas as coisas.
Raimundo Silva deitou-se. Está de costas, com as mãos cruzadas
atrás da nuca, não sente ainda o frio. Tem dificuldade em reflectir no que fez,
sobretudo não consegue reconhecer a gravidade do seu acto, e chega mesmo a
surpreender-se por nunca antes lhe ter ocorrido a ideia de alterar o sentido
doutros livros que reviu. Num momento que lhe parece ser como se estivesse a
desdobrar-se, a afastar-se de si mesmo, observa-se a pensar, e assusta-se um
pouco. Depois encolhe os ombros, adia a preocupação que começava a insinuar-se
no seu espírito, Veremos, amanhã decidirei se deixo ficar a palavra, ou a
retiro. Ia voltar-se para o lado direito, virando as costas à metade vazia da
cama, quando percebeu que a sereia de aviso se calara, quem sabe há quanto
tempo, Não, ouvi-a quando estava a dizer o discurso do rei, lembro-me exactamente,
entre duas frases, o mugido rouco, como de touro que se tivesse perdido entre a
névoa, bramindo para o céu branco, longe da manada, é estranho que não haja
animais marinhos com vozes capazes de encher a vastidão do mar, ou este largo
rio, vou ver como está o céu. Levantou-se, cobriu-se com o roupão de fazenda
grossa que, de inverno, sempre estende sobre os cobertores da cama, e foi abrir
a janela. O nevoeiro desaparecera, não se acredita que tantas cintilacões
tivessem estado ocultas nele, as luzes pela encosta abaixo, as outras do outro
lado, amarelas e brancas, projectada sobre a água como trémulos lumes. Está
mais frio. Raimundo Silva pensou, pessoanamente. Se eu fumasse, acenderia agora
um cigarro, a olhar o rio, pensando como tudo é vago e vário assim, não
fumando, apenas pensarei que tudo é vário e vago, realmente, mas sem cigarro,
ainda que o cigarro, se o fumasse, por si mesmo exprimisse a variedade e a
vaguidade das coisas, como o fumo, se fumasse. O revisor demora-se à janela, ninguém
o chamará, Vem para dentro, olha que te constipas, e ele tenta imaginar que o chamam
docemente, mas fica ainda um minuto a pensar, vago ele, e vário, e enfim, como se
outra vez o tivessem chamado, Vem para dentro, peço-te, condescende em fechar a
janela, deita-se sobre o lado direito, à espera. De sono.