História
do cerco de Lisboa
José
Saramago
A
Pilar
Enquanto não alcançares a
verdade, não poderás corrigi-la.
Porém, se a não corrigires,
não a alcançarás. Entretanto, não
te resignes.
Capítulo 1
Disse o revisor, Sim, o nome deste sinal é deleatur. usamo-lo
quando precisamos suprimir e apagar, a própria palavra o está a dizer, e tanto
vale para letras soltas como para palavras completas, Lembra-me uma cobra
que se tivesse arrependido no momento de morder a cauda, Bem observado, senhor doutor, realmente, por muito agarrados que
estejamos à vida, até uma serpente hesitaria diante da eternidade, Faça-me
aí o desenho, mas devagar, É facílimo,
basta apanhar-lhe o jeito, quem olhar distraidamente cuidará que a mão vai traçar
o terrível círculo, mas não, repare que não rematei o movimento aqui onde o
tinha começado, passei-lhe ao lado, por dentro, e agora vou continuar para
baixo até cortar a parte inferior da curva, afinal o que parece mesmo é a letra
Q maiúscula, nada mais, Que pena, um desenho que prometia tanto, Contentemo-nos com a ilusão da semelhança,
porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo
profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
Que tem isso que ver com a revisão tipográfica, Os senhores autores vivem nas alturas, não gastam o precioso saber em
despiciências e insignificâncias, letras feridas, trocadas, invertidas, que
assim lhes classificávamos os defeitos no tempo da composição manual, diferença
e defeito, então, era tudo um, Confesso que os meus deleatures são menos
rigorosos, um rabisco dá-me para tudo, confio-me à sagacidade dos tipógrafos,
essa tribu colateral da edípica e celebrada família dos farmacêuticos, capazes
até de decifrar o que nem chegou a ser escrito, E depois os revisores que acudam a resolver os problemas, Sois
nossos anjos-da-guarda, a vós nos confiamos, você, por exemplo, traz-me à
lembrança a minha estremosa mãe, que me fazia e tornava a fazer a risca do
cabelo até ficar como traçada a tira-linhas, Obrigado pela comparação, mas, se a sua mãezinha já morreu, valia-lhe a
pena agora aperfeiçoar-se por sua conta, sempre chega o dia em que é preciso
corrigir mais no profundo, Corrigir, corrijo eu, mas as piores dificuldades
resolvo-as à maneira expedita, escrevendo uma palavra por cima de outra, Tenho reparado, Não o diga nesse tom,
dentro do que cabe faço o que posso, e quem consegue fazer o que pode, A mais não estará obrigado, sim senhor,
sobretudo, como é o seu caso, quando falta o gosto da modificação, o prazer da
mudança, o sentido da emenda, Os autores emendam sempre, somos os eternos
insatisfeitos, Nem têm outro remédio, que
a perfeição tem exclusiva morada no reino dos céus, mas o emendar dos autores é
outro, problemático, muito diferente deste nosso, Quer você dizer na sua
que a seita revisora gosta do que faz, Tão
longe não ouso ir, depende da vocação, e revisor de vocação é fenômeno desconhecido,
no entanto, o que parece demonstrado é que, no mais secreto das nossas almas secretas,
nós, revisores, somos voluptuosos, Essa nunca eu tinha ouvido, Cada dia traz sua alegria e sua pena, e
também sua lição proveitosa, É por experiência que fala, Refere-se à lição, Refiro-me à volúpia, Claro que falo por experiência própria,
alguma haveria eu de ter, que é que julga, mas igualmente tenho beneficiado de observação
dos comportamentos alheios, que é ciência moral não menos edificadora,
Certos autores do passado, se os julgarmos por esse seu critério, seriam gente
da espécie, revisores magníficos, estou a lembrar-me das provas revistas pelo Balzac,
um deslumbramento pirotécnico de correcções e aditamentos, O mesmo fazia o nosso Eça doméstico, para que não fique sem menção um exemplo
pátrio, Agora me ocorre que tanto o Eça como o Balzac se sentiriam os mais
felizes dos homens, nos tempos de hoje, diante de um computador, interpolando,
transpondo, recorrendo linhas, trocando capítulos, E nós, leitores, nunca saberíamos por que caminhos eles andaram e se
perderam antes de alcançarem a definitiva forma, se existe tal coisa, Ora,
ora, o que conta é o resultado, não adianta nada conhecer os tenteios e
hesitações de Camões e Dante, O senhor
doutor é um homem prático, moderno, já está a viver no século vinte e dois,
Diga-me cá, os outros sinais, também levam nomes latinos, como o deleatur, Se os levam, ou levaram, não sei,não estou
habilitado, talvez fossem tão difíceis de pronunciar que se perderam, Na
noite dos tempos, Desculpar-me-á se o contradigo,
mas eu não empregaria a frase, Calculo que por ser lugar-comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases
feitas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e
provérbios, tudo pode aparecer como novidade, a questão está só em saber
manejar adequadamente as palavras que estejam antes e depois, Então por que
não diria você noite dos tempos, Porque
os tempos deixaram de ser noite de si mesmos quando as pessoas começaram a
eserever, ou a emendar, torno a dizer, que é obra doutro requinte e outra transfiguração,
Gosto da frase, Eu também, principalmente
porque é a primeira vez que a digo, à segunda vez terá menos graça, Ter-se-á
tornado em lugar-comum, Ou tópico, que é vocábulo
erudito, Creio perceber nas suas palavras uma certa amargura céptica, Vejo-a mais como um cepticismo amargo,
Quem diz uma coisa, diz outra, Mas não
dirá o mesmo, os autores costumavam ter bom ouvido para estas diferenças,
Talvez se me estejam a endurecer os tímpanos, Desculpe, foi sem intenção, Não sou susceptível, adiante, diga-me
antes por que se sente assim amargo, ou céptico, como queira, Considere, senhor doutor, a vida quotidiana
dos revisores, pense na tragédia de terem de ler uma vez, duas, três, ou
quatro, ou cinco vezes, livros que, Provavelmente, nem uma só vez o
mereceriam, Fique registado que não fui
eu quem proferiu tão gravosas palavras, conheço muito bem o meu lugar na
sociedade das letras, voluptuoso, sim, confesso-o, mas respeitador, Não
vejo onde esteja essa terribilidade, aliás parecia-me a conclusão óbvia da sua frase,
aquela eloquente suspensão, apesar de não se lhe verem as reticências, Se quer saber, vá aos autores, provoque-os
com o meio dito meu e o meio dito seu, e
verá como eles lhe respondem com o aplaudido apólogo dc Apeles e o sapateiro, quando
o operário apontou o erro na sandália duma figura e depois, tendo verificado
que o artista emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre a
anatomia do joelho, Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe
disse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histórica, Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro
do quintal, Neste caso, o Apeles tinha razão, Talvez, mas só enquanto não viesse examinar a pintura um sábio
anatomista, Você é definitivamente céptico, Todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapateiro é a mais comum
entre os humanos, enfim, só o revisor aprendeu que o trabalho de emendar é o
único que nunca se acabará no mundo, Tem sentido muitas tentações de
sapateiro na revisão do meu livro, A
idade traz-nos uma coisa boa que é uma coisa má, acalma-nos, e as tentações,
mesmo quando são imperiosas, tornam-se menos urgentes, Por outras palavras,
vê o defeito da chinela, mas cala-se, Não,
o que eu deixo passar é o erro do joelho, Gosta do livro, Gosto, Di-lo com pouquíssimo entusiasmo,
Também não o notei na sua pergunta, Questão
de táctica, o autor, ainda que muito Lhe custe, deve exibir alguns ares de
modéstia, Modesto sempre o revisor terá de
ser, e, se lhe deu um dia para ser imodesto, com isso se obrigou a ser, em
figura humana, a suma perfeição, Não reviu a frase, três vezes a palavra
ser num fôlego só, é imperdoável, concorde, Deixe
ficar a chinela, a falar tudo se desculpa, Pois, mas não lhe perdoo a Avareza
da opinião, Recordo-lhe que os revisores
são gente sóbria, já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lho
eu, é de história, Assim realmente o
designariam segundo a classificação tradicional dos gêneros, porém, não sendo
propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor
doutor, tudo quanto não for vida, é literatura, A história também, A história sobretudo, sem querer ofender,
E a pintura, e a música, A música anda a insisti
desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por
inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero
que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de
saber escrever, Conhece o rifão, se não
tens cão caça com o gato, por outras palavras, quem não pode escrever pinta, ou
desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras,
é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era,
Parece-me um ponto de vista bastante original, Não o creia, senhor doutor, o rei Salomão, que há tanto tempo viveu, já
então afirmava que não havia nada de novo debaixo da rosa do sol, ora, quando
naquelas épocas recuadas assim o reconheciam, o que não diremos hoje, trinta
séculos passados, se a mim não me falha agora a memória da enciclopédia, É curioso,
eu, e mais sou historiador, não me lembraria, se perguntado de repente, que
tivesse sido há tantos anos, É o que tem
o tempo, corre e não damos por ele, está uma pessoa por aí ocupada nos seus
quotidianos, subitamente cai em si e exclama, meu Deus como o tempo passa,
ainda agora estava o rei Salomão vivo e já lá vão três mil anos, Quer-me
parecer que você errou a vocação, devia era ser filósofo, ou historiador, tem o
alarde e a pinta que tais artes requerem, Falta-me
o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer em o preparo, muita
sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer,
em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas,
Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço,
não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus
autodidactas, Isso acabou, veio o
desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que
escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser e a
continuar a ser autodidactas, sorte deles, mas eu, confesso-lhe, para a criação
literária nunca tive jeito, Meta-se a filósofo, homem, O senhor doutor é um humorista de finíssimo espírito, cultiva magistralmente
a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela grave e
profunda ciência, Sou irônico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real,
literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que
ainda não poderia chamar-se-lhe história, Tem
a certeza, senhor doutor, Na verdade, você é uma interrogação com pernas e
uma dúvida com braços, Não me falta mais
que a cabeça, Cada coisa a seu tempo, o cérebro foi a última coisa a ser
inventada, O senhor doutor é um sábio,
Meu caro amigo, não exagere, Quer ver as últimas
provas, Não vale a pena, as correcções de autor estão feitas, o resto é a
rotina da revisão final, fica nas suas mãos, Obrigado pela confiança, Muito merecida, Então o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho, sim,
Que a história foi vida real, quero
dizer, Não tenha a menor dúvida, Que
seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou o revisor.
Fortuna Crítica:
"José Saramago: tudo, provavelmente, são ficções; mas a literatura é vida", de Eula Carvalho Pinheiro, Editora Musa, 2012.
"A literatura não tem por objetivo copiar o real, mas dizê-la a sua maneira, num contínuo exercício de linguagem; agindo em simulacro ela é realidade em si mesma"
Eula Carvalho Pinheiro
Mestre pela Universidade Federal de Juiz de Fora
Doutoranda pela Universidade Nova de Lisboa
História do cerco de Lisboa (1989)
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