sexta-feira, 12 de julho de 2013

Raimundo Benvindo Silva


O revisor tem nome, chama-se Raimundo. Era já tempo de sabermos quem seja a pessoa de quem vimos falando indiscretamente, se é que nome e apelidos alguma vez puderam acrescentar proveito que se visse às costumadas referências sinaléticas e outros desenhos, idade, altura, peso, tipo morfológico, tom da pele, cor dos olhos, e dos cabelos, se lisos, crespos ou ondulados, ou simplesmente perdidos, metal da voz, límpida ou rouca, gesticulação característica, maneira de andar, porquanto a experiência das relações humanas tem demonstrado que, sabendo nós isto e às vezes muito mais, nem o que sabemos nos serve, nem somos capazes de imaginar o que nos falta. Talvez só uma ruga, ou a forma das unhas, ou a grossura do pulso, ou o traço da sobrancelha, ou uma cicatriz antiga e invisível, ou apenas o apelido que não chegara a ser dito, aquele que mais se estima, neste caso Silva, nome completo Raimundo Silva, assim se apresenta quando tem de o fazer, omitindo o Benvindo do que não gosta. Ninguém está satisfeito com o que lhe coube em sorte, esta é uma geral verdade, e Raimundo Silva, que sobre todo o mais deveria apreciar chamar-se Benvindo, que precisamente diz o que quer dizer, bem-vindo à vida, meu filho, pois não senhor, não gosta do nome, felizmente, diz ele, que se perdeu a tradição de decidirem os padrinhos sobre a melindrosa questão da onomástica, embora reconheça que lhe agrada muito ser Raimundo, por um não sei quê de solene ou antigo que há na palavra. Dos bens da senhora que foi madrinha esperavam os pais de Raimundo alguma parte para o futuro do filho, por isso é que, faltando ao costume que mandava dar ao menino apenas o nome do padrinho, se acrescentou o nome da paraninfa, passado a masculino. O destino não atende da mesma maneira a todas as coisas, sabemo-lo bem, mas neste caso alguma concomitância se há-de reconhecer entre uns bens de que nunca houve benefício e um nome tão resolutamente repudiado, não se devendo, porém, suspeitar da existência de uma relação de causa e efeito entre a decepção e a rejeição. Em Raimundo Benvindo Silva, os motivos, que em momento algum da sua vida haviam sido de rancorosa frustração, são hoje, uns, meramente estéticos, por não lhe soar bem a vizinhança dos dois gerúndios e os outros, por assim dizer, éticos e ontológicos, porque, segundo a sua maneira desenganada de entender, só uma ironia muito negra pretenderia fazer crer que alguém é realmente bemvindo a este mundo, o que não contradiz a evidência de alguns se acharem bem instalados nele.

Da varanda, breve sacada antiga sob um alpendre de madeira ainda com forro de caixotões, vê-se o rio, e é um imenso mar o que os olhos alcançam entre raio e raio, desde o traço vermelho da ponte até aos rasos sapais de Pancas e Alcochete. Uma neblina fria tapa o horizonte, aproxima-o quase ao alcance da mão, a cidade visível está reduzida a estelado, com a Sé em baixo, a meia encosta, e em degraus os telhados das casas, descendo até à água baça, parda, onde uma fugidia esteira branca se abre quando um barco rápido passa, outros há que navegam dificilmente, pesados, como se estivessem lutando contra uma corrente de mercúrio, comparação esta que seria bem mais apropriada à noite, não agora. Raimundo Silva levantou-se menos cedo do que é seu costume, trabalhara pela noite dentro, um serão longo, arrastado, e quando, de manhã, abriu a janela, bateu-lhe este nevoeiro na cara, mais fechado do que o vemos a esta hora, meio-dia, quando o tempo vai ter de decidir se carrega ou alivia, de acordo com a voz popular. Então as torres da Sé não eram mais do que um borrão apagado, de Lisboa pouco mais havia que um rumor de vozes e de sons indefinidos, a moldurada janela, o primeiro telhado, um automóvel ao comprido da rua. O almuadem, cego, tinha gritado para o espaço duma manhã luminosa, rubra, e logo azul, a cor do ar entre a terra que aqui está e o céu que nos cobre, se quisermos acreditar nos insuficientes olhos com que viemos ao mundo, mas o revisor, que hoje quase tão cego se vê como ele, apenas resmungou, com o mau humor de quem, tendo dormido mal, andara em trabalhosos sonhos de cerco, montantes, alfanges e fundas baleares, irritado, ao acordar, por não conseguir lembrar-se de como eram feitas as tais máquinas de guerra, das fundas é que falamos, e das profundas falas de quem no sonho estava falaríamos, mas não caiamos já na tentação de antecipar os factos, agora só devemos lamentar a oportunidade perdida de saber-se, enfim, que máquinas eram as ditas fundas, como se armavam e disparavam, que não é tão raro assim revelarem-se nos sonhos grandes mistérios, e entre eles não incluímos o número da sorte grande, banalidade suprema e indigna de qualquer sonhador que se respeite. Ainda na cama, Raimundo Silva, perplexo, perguntava a si mesmo por que razão insistia em pensar nas fundas baleares, ou fundíbulos, como também se diria, acertando por igual, Baleares não deve ter nada que ver com as ilhas do mesmo nome, virá de balas, e balas sabemos o que são, projécteis, pedras que as máquinas atirariam contra os muros e por cima deles, para caírem sobre as casas e a gente de dentro, espavorida, mas balas não é palavra daquele tempo, as palavras não podem ser levianamente transportadas de cá para lá e de lá para cá, cuidado, aparece logo alguém que diz, Não percebo. Adormeceu, esteve assim dez minutos, e ao despertar de novo, agora lúcido, afastou do pensamento as máquinas que teimavam em voltar e deixou que as imagens das espadas e das cimitarras lhe ocupassem perigosamente o espírito, sorriu na penumbra do quarto porque bem sabia que se tratava de evidentes símbolos fálicos, é certo que atraídos ao sonho pela História do Cerco de Lisboa, mas em si enraizados, quem o duvida, se armas de ponta e fio têm raízes, cravadas, sim, estarão, bastava olhar a cama vazia a seu lado para compreender tudo. Deitado de costas, cruzou os braços sobre os olhos, murmurou sem nenhuma originalidade, Mais um dia, não ouvira o almuadem, como se arranjaria naquela religião um mouro surdo para não faltar às orações, sobretudo a da manhã, decerto pediria a um vizinho, Em nome de Alá, bate à porta com força e não pares de bater enquanto eu não vier abrir. A virtude não é tão fácil como o vício, mas pode ser ajudada.

Nesta casa não vive mulher. Duas vezes por semana vem uma de fora, mas não se pense que aquele lugar vago da cama tem que ver com a bissemanal visita, são diferentes precisões, ficando desde já explicado que para o alívio das importunações mais imperiosas da carne o revisor desce à cidade, contrata, satisfaz-se e paga, sempre teve de pagar, que remédio, mesmo quando não se achou satisfeito, que o verbo não tem um sentido só, como se crê vulgarmente. A mulher que vem de fora é o que chamamos a-dias, trata-lhe da roupa, arruma e limpa o mais substancial da casa, põe a cozer uma grande panela de sopa, a mesma, feijão branco e hortaliça, que dará para alguns dias, não é que ao revisor não caiam bem outras variedades, mas reserva-as para o restaurante, aonde vai uma vez por outra, sem exageros de assiduidade. Não há pois mulher nesta casa, nem nunca a houve. O revisor Raimundo Benvindo Silva é solteiro e não pensa em casar-se, Tenho mais de cinquenta anos, diz ele, quem é que me iria querer agora, ou a quem iria eu querer, ainda que, como todo o mundo sabe, seja muito mais fácil querer do que ser querido, e este último comentário, que se diria ser como o eco duma dor passada, agora tornada em sentença para lição dos confiados, este comentário, mais a pergunta que o precedeu, fá-los ele a si próprio, porque é homem bastante reservado para não andar aí a derramar-se por amigos e conhecidos, que os terá, embora, provavelmente, não vá ser preciso convocá-los ao relato, pelo jeito que ele leva. Não tem irmãos, os pais morreram-lhe nem cedo nem tarde, a família, se resta alguma, anda dispersa, notícias dela, quando chegam, pouco adiantam à tranquilidade de afinal não a ter, a alegria passou, o luto não vale a pena, e a única coisa que verdadeiramente sente próxima de si é a prova que estiver a ler, enquanto dura, o erro que é preciso desemboscar, e também, quando calha, uma preocupação que não teria de ser sua, lá se avenham os autores, que para isso levam as honras, corno este desassossego agora das fundas baleares que lhe voltou ao pensamento e não quer sair. Raimundo Silva levantou-se, enfim, procurou com os pés as babuchas, Chinelos, chinelos, que é a palavra cristã, vinda de Génova e aqui, também ela, passada a masculino, e entrou no escritório enquanto vestia o roupão por cima do pijama. De longe em longe, a mulher a- dias faz-lhe solene declaração sobre a necessidade de limpar o pó dos livros, que, sobretudo nas prateleiras altas, onde se arrumam os que só muito raramente são consultados, mais parece ser o depósito aluvial duma acumulação de séculos, um pó negro, como de cinza, que não se sabe donde vem, de tabaco não pode ser, que o revisor há muito que deixou de fumar, é a poeira do tempo, e está tudo dito. Sem que se saiba bem porquê, a tarefa é sempre adiada, o que, calcula-se, não desagrada à ancilar pessoa, aos seus próprios olhos absolvida pela intenção, e que não perde nenhuma ocasião de dizer, Mas olhe que a culpa não é minha.

Raimundo Silva procura nos dicionários e enciclopédias, vê em Armas, em Idade Média, busca Máquinas de Guerra, e encontra as descrições vulgares do arsenal da época, rudimentar, basta dizer que então não se conseguia matar um homem escolhido que estivesse a duzentos passos de distância, forte perda, nem nada que se comparasse, e para a caça, se não havia à mão arco ou besta, tinha o caçador de acercar-se aos braços do urso ou aos galhos do cervo ou aos dentes do javardo, hoje o que ainda conserva parecenças com tão arriscadas aventuras é a corrida de touros, os toureiros são os últimos homens antigos. Em nenhum lugar se explica nestes potentes volumes, nenhum desenho dá uma ideia ao menos aproximada do que fosse aquela mortífera fábrica que tanto amedrontava os mouros, mas esta ausência de informação já não é novidade para Raimundo Silva, agora o que ele quer descobrir é por que se chamava balear à funda, e vai de livro em livro, rebusca, impacienta-se, até que, finalmente, o precioso, o inestimável Bouillet lhe ensina que os habitantes das Baleares eram considerados, na Antiguidade, os melhores arqueiros do mundo conhecido, que era, evidentemente, todo, e que daí tinham tomado as ilhas o nome, pois em grego atirar diz-se ballô, não há nada mais claro, qualquer simples revisor é capaz de ver a etimológica linha recta que liga ballô a Baleares, o erro, tratando-se da funda, está em ter-se escrito balear quando baleárica é que seria correcto, senhor doutor. Mas Raimundo Silva não emendará, o uso faz alguma lei, quando a não fez toda, e, acima de tudo, primeiro mandamento do decálogo do revisor que aspire à santidade, aos autores deve-se evitar sempre o peso de vexações. Arrumou o livro, abriu a janela, e foi então que o nevoeiro lhe deu na cara, denso, cerradíssimo, se no lugar das torres da Sé ainda estivesse a almádena da mesquita maior, decerto não a poderia ver, por tão delgada que era, aérea, imponderável quase, e então, se essa fosse a hora, a voz do almuadem desceria do céu branco, directamente de Alá, por uma vez louvador em causa própria, o que de todo não poderíamos censurar-lhe porque, sendo quem é, com certeza se conhece bem.
Ia a manhã em meio quando o telefone tocou. Era da editora, queriam saber notícias sobre o andamento da revisão, quem começou por falar foi a Mónica da Produção que tem, como todos os que trabalham nesse sector o hábito da menção majestática, assim, Senhor Silva, disse a Produção pergunta, parece que estamos a ouvir, Sua Alteza Real quer saber, e repete como os arautos repetiam A Produção pergunta pelas provas, se falta muito para entregá-las, mas ela, a Mónica, ainda não percebeu, depois de tanto tempo de vida em parte comum, que Raimundo Silva detesta que lhe chamem Silva sem mais nada, não que o aborrece a vulgaridade do nome, que anda pela dos Santos e Sousas, mas porque lhe faz falta o Raimundo, por isso respondeu, seco, ferindo injustamente a pessoa delicada que Mónica é, Diga lá que amanhã está pronto o trabalho Eu digo, senhor Silva, eu digo, e mais não acrescentou porque o telefone foi tomado bruscamente por outra pessoa, Fala Costa, Aqui Raimundo Silva, pôde o revisor responder, Já sei, é que as provas preciso delas ainda hoje, tenho a programação estoirada, se não meto o livro a imprimir amanhã de manhã arma-se um sarilho dos diabos, e tudo por causa da revisão, Para este tipo de livro, assunto, número de páginas, o tempo de revisão está dentro da média, Não me venha com médias, quero o trabalho acabado, a voz do Costa subira, sinal de que deveria estar por perto um chefe um director, talvez o próprio patrão. Raimundo Silva inspirou fundo, argumentou, Revisões feitas à pressa dão ocasião a erros, E livros que se atrasam na saída significam prejuízo não há dúvida, o patrão assiste à conversa, mas o Costa acrescenta, Vale mais deixar passar duas gralhas do que perder um dia de vendas, fique sabendo, não, o patrão não está, nem director, nem chefe, o Costa não admitiria com tanta naturalidade erros de revisão em proveito da rapidez, É uma questão de critérios, respondeu Raimundo Silva e o Costa, implacável, Não me fale de critérios, conheço bem o seu, o meu é muito simples, preciso dessas provas para amanhã, sem falta, arranje-se como quiser, a responsabilidade é sua, Já tinha dito à Mónica que o trabalho estará pronto amanhã, Amanhã tem ele que entrar na máquina, Entrará, pode mandar buscá-lo às oito horas, É cedo de mais, a essa hora ainda isto está fechado, Então mande buscar quando quiser, não posso continuar aqui a perder tempo, e desligou. Raimundo Silva está acostumado, não toma muito a peito as impertinências do Costa, más-criações sem maldade, coitado do Costa, que não pára de falar da Produção, A Produção é que se trama sempre, diz ele, sim senhor, os autores, os tradutores, os revisores, os capistas, mas se não fosse cá a Produçãozinha, eu sempre queria ver de que é que lhes adiantava a sapiência, uma editora é como uma equipa de futebol, muito floreado lá na frente, muito passe, muito drible, muito jogo de cabeça, mas se o guarda-redes for daqueles paralíticos ou reumáticos vai-se tudo quanto Marta fiou, adeus campeonato, e o Costa sintetiza, algébrico desta vez, A Produção está para a editora como o guarda-redes está para a equipa. O Costa tem razão.

Chegando a hora do almoço, Raimundo Silva fará uma omeleta de três ovos com chouriço, excesso dietético que o seu fígado por enquanto ainda aguenta. Com um prato de sopa, uma laranja, um copo de vinho, um café para rematar, de mais não necessita quem tem esta vida sedentária. Lavou cuidadosamente a louça, gasta mais água e detergente do que o preciso, enxugou-a, arrumou-a no armário da cozinha, é um homem ordenado, um revisor no absoluto sentido da palavra, se é que alguma palavra pode existir e continuar a existir levando consigo um sentido absoluto, para sempre, uma vez que o absoluto não pede menos. Antes de voltar ao trabalho foi ver como estava o tempo, limpara um pouco, a outra margem do rio já começa a ser visível, apenas uma linha escura, um borrão alongado, o frio não parece ter diminuído. Sobre a secretária estão quatrocentas e trinta e sete provas de página, em duzentas e noventa e três já foi feita a verificação das emendas, o que falta não é coisa que assuste, o revisor tem a tarde toda, e a noite, sim, também a noite, porque é seu profissional escrúpulo fazer sempre uma derradeira leitura, seguida, como um leitor comum, finalmente o prazer e a felicidade de compreender de uma maneira livre, solta, sem desconfianças, tinha muita razão aquele autor que perguntou um dia, Aos olhos de um falcão, como seria a pele de Julieta, ora, o revisor em sua agudíssima tarefa, é precisamente o falcão, mesmo quando já se lhe for cansando a vista, porém, em chegando a hora da leitura final, é tal qual Romeu quando olhou pela primeira vez Julieta, inocente, trespassado de amor.

Neste caso da História do Cerco de Lisboa, já sabe Romeu que não encontrará motivos bastantes de embevecimento, embora Raimundo Silva, na conversação preambular e algo labiríntica sobre as emendas dos erros e os erros das emendas, tenha dito ao autor que gostava do livro, e, de facto, não mentiu. Mas, que é gostar, perguntamos nós entre o muito gostar e o nada gostar está o menos e o pouco, e não chega escrevê-lo para sabermos que partes de sim, de não e de talvez comporta tudo aquilo, seria preciso proferi-lo em voz alta, o ouvido capta a vibração última, capta sempre, e quando nos enganamos ou nos deixamos enganar é só porque não demos ao ouvido ouvidos suficientes. Reconheça-se, porém, que aquele diálogo nada teve de enganador neste ponto, logo se percebeu que se tratava dum gostar sem cor, alheado, disse Raimundo Silva aquela palavra morna, Gosto, e ainda mal acabou de ser dita já está fria. Em quatrocentas e trinta e sete páginas não se encontrou um facto novo, uma interpretação polémica, um documento inédito, sequer uma releitura. Apenas mais uma repetição das mil vezes contadas e exaustas histórias do cerco, a descrição dos lugares, as falas e as obras da real pessoa, a chegada dos cruzados ao Porto e sua navegação até entrarem no Tejo, os acontecimentos do dia de S. Pedro, o ultimato à cidade, os trabalhos do sítio, os combates e os assaltos a rendição, finalmente o saque, die vero quo omnium sanctorum celebratur ad laudem et honorem nominis Christi ET sanctissimae ejus genitricis purificatum est templum, dizem que escreveu Osberno, entrado na imortalidade das letras graças ao cerco e tomada de Lisboa e às histórias que deles se contaram, significando este latim, traduzido por cima do ombro de quem sabe, que no Dia de Todos os Santos passou a corrupta mesquita a puríssima igreja católica, e agora sim, agora é que o almuadem nunca mais poderá chamar os crentes à oração de Alá, vão substituí-lo por um sino ou sineta depois de terem substituído um deus por outro, feliz caso teria sido terem-no deixado ir, É cego, coitado, salvo se de ira sanguinária cego ia precisamente o cruzado Osberno, só igual de nome, quando viu à frente da sua espada um mouro velho que nem para fugir tinha já forças, ali espojado no chão, agitando as pernas e os braços como se intentasse afundar-se pela terra dentro, este medo real em vez do outro, imaginário, e há-de consegui-lo, tão certo como estar vivo ainda, mas não por muito tempo mais dizemos nós, nem sozinho poderá, porque estará morto então, pensou o revisor, por enquanto estão a ser abertas as valas comuns. A intervalos, vindo do rio, ouve-se um mugido rouco de sereia, está assim desde manhã, a avisar a navegação, mas só neste instante é que Raimundo Silva deu por ele, talvez por causa do grande e súbito silêncio que dentro de si se fez.

É janeiro, anoitece cedo. A atmosfera do escritório pesa, abafada. As portas estão fechadas. Para defender-se do frio, o revisor tem uma manta sobre os joelhos, o calorífero mesmo ao lado da secretária, quase a escaldar-lhe os tornozelos. Já se percebeu que a casa é antiga, sem conforto, de um tempo espartano e bronco, quando sair para a rua, na altura dos frios maiores, ainda era o melhor remédio para quem não dispusesse senão de um corredor gélido onde aquecer o corpo em pequenos exercícios de marcha. Mas, nesta última página da História do Cerco de Lisboa pode Raimundo Silva encontrar a ardente expressão de um patriotismo fervoroso, que decerto saberá reconhecer se a vida monótona e paisana não lhe entibiou o seu próprio, agora se arrepiará, sim, mas daquele sopro único que vem da alma dos heróis, repare-se no que escreveu o historiador, No alto do castelo o crescente muçulmano desceu pela derradeira vez e, definitivamente, para sempre, ao lado da cruz que anunciava ao mundo o baptismo santo da nova cidade cristã, elevou-se lento no azul do espaço, beijado da luz, sacudido das brisas, a despregar-se ovante no orgulho da vitória, o pendão de D. Afonso Henriques, as quinas de Portugal, merda, e que não se cuide que a má palavra a dirige o revisor ao nacional emblema, é antes o legítimo desabafo de quem, tendo sido ironicamente repreendido por ingénuos erros da imaginação, vai ter de consentir que passem a salvo outros não seus, quando o que lhe está a apetecer, e com justo direito, é lançar nas margens do papel uma chuva de indignados deleatures, porém, já sabemos, não o fará, que com emendas deste calibre ficaria avexado o autor, Reduza-se o sapateiro à observação da gáspea, que só para isso é que lhe pagam, estas foram as impacientes palavras de Apeles, definitivas. Ora, estes erros não são como os das fundas, simples bagatela entre uma talvez-sim e uma talvez-não, que em boa verdade tanto nos dá hoje que lhes chamem baleáricas como baleares, o que de todo não se deveria permitir é esta insensatez de falar de quinas em tempo de D. Afonso o Primeiro, quando só no reinado de seu filho Sancho foi que elas tomaram lugar na bandeira, e ainda assim dispostas não se sabe como, se em cruz ao centro, se uma aí e as outras cada qual em seu canto, se ocupando o campo todo, esta, segundo as autoridades mais sérias, a hipótese forte. Nódoa grave, mas não única, que para todo o sempre ficará manchando a página final da História do Cerco de Lisboa, sobre o demais tão ricamente instrumentada de tubas retumbantes, tão de tambores, tão de retórico arrebato, com as tropas formadas em parada, assim as imaginamos, pé-terra infantes e cavaleiros, assistindo ao arriar do estandarte abominável e ao hastear da insígnia cristã e lusitana, gritando numa só voz Viva Portugal e batendo com as espadas nos escudos, em enérgica algazarra militar, e depois o desfile perante o rei, que está calcando aos pés, vindicativamente, além do sangue mouro, o crescente muçulmano, segundo erro e supremo disparate, que nunca tal bandeira foi erguida sobre os muros de Lisboa, pois, como o historiador não deveria ignorar, crescente em bandeira foi invenção do império otomano, dois ou três séculos mais tarde. Raimundo Silva ainda pousou o bico da esferográfica sobre as quinas, mas logo pensou que se dali as tirasse, e ao crescente, seria como um terramoto na página, tudo viria abaixo, história sem remate a condizer com a grandeza do instante, e esta lição é muito boa para instruir-se a gente sobre a importância duma coisa que, à primeira vista, não passa de um pedaço de pano de uma ou várias cores com figuras recortadas também diversamente coloridas, que tanto podem ser castelos como estrelas, ou leões, ou unicórnios, ou águias, ou sóis, ou foices, ou martelos, ou chagas, ou rosas, ou sabres, ou machetes, ou compassos, ou rodas, ou cedros, ou elefantes, ou bois, ou barretes, ou mãos, ou palmeiras, ou cavalos, ou candelabros, eu que sei, perdese uma pessoa neste museu se não leva guia nem catálogo, pior ainda se às bandeiras se lembrar de juntar os brasões, que tudo é uma família só, então será um nunca mais acabar de flores-de-lis, de conchas, de fivelas, de leopardos, de abelhas, de guisos, de árvores, de báculos, de mitras, de espigas, de ursos, de salamandras, de garças, de anéis, de patos, de pombos, de javalis, de virgens, de pontes, de corvos e caravelas, de lanças, de livros, sim, até livros, a Bíblia, o Corão, o Capital, adivinhe quem puder, e mais, e mais, de tudo isto se podendo concluir que os homens são incapazes de dizer quem são se não puderem alegar que são outra coisa, motivo afinal suficiente, neste caso, para que aí deixemos ficar o episódio das bandeiras, a decaída e a exaltada, mas cientes de que tudo não passa de mentira, útil até certo ponto, ó máxima vergonha, pois que não tivemos a coragem de emendá-la nem saberíamos pôr no seu lugar a verdade substancial, aspiração sobre todas excessiva, porém inextinguível, que Alá se amerceie de nós.

Pela primeira vez em tantos anos de ofício minucioso, Raimundo Silva não fará leitura final e completa de um livro. São, como já foi dito, quatrocentas e trinta e sete páginas fortíssimas de notas, para ler tudo teria de ficar acordado a noite inteira, ou pouco menos, e não lhe apetece o martírio, tomou-se de resoluta antipatia pela obra e pelo autor dela, amanhã irão dizer os leitores inocentes e repetirá a juventude das escolas que a mosca tem quatro patas, por assim o ter afirmado Aristóteles, e no próximo centenário da tomada de Lisboa aos mouros, no ano de dois mil e quarenta e sete, se Lisboa houver ainda e portugueses nela, não faltará um presidente para evocar aquela suprema hora em que as quinas, ovantes no orgulho da vitória, tomaram o lugar do ímpio crescente no céu azul da nossa formosa cidade.
No entanto, exige-lhe a consciência profissional que, ao menos, vá percorrendo devagar as páginas, os olhos expertos vagando sobre as palavras, confiado em que, variando assim o nível de atenção, qualquer erro menor de alçada sua se deixaria surpreender, como sombra que o movimento do foco luminoso subitamente deslocou, ou aquele conhecido relance da visão lateral que capta, no último instante, uma imagem em fuga. Importa nada saber se Raimundo Silva conseguiu limpar de todo as enfadonhas laudas, o que sim valerá a pena é observá-lo enquanto relê o discurso que D. Afonso Henriques fez aos cruzados, conforme a versão dita de Osberno, ali traduzida do latim pelo próprio autor da História, que não se fia das lições alheias, mormente tratando-se de matéria de tal responsabilidade, nem mais nem menos a primeira fala averiguada do nosso rei fundador, que outra, aliás, não se conhece bastantemente autorizada. Para Raimundo Silva, o discurso é, todo ele, de ponta a ponta, uma absurdidade, não que se permita duvidar do rigor da tradução, que não está a latinaria entre as suas prendas de revisor apenas médio, mas porque não se pode, é que não se pode mesmo acreditar que da boca deste rei Afonso, sem prendas, ele, de clérigo, tenha saído a complicada fala, bem mais à semelhança dos sermões arrebicados que os frades hão-de dizer daqui a seis ou sete séculos do que dos curtos alcances duma língua que ainda agora começava a balbuciar. Estava o revisor, assim, sorrindo escarninhamente, quando de súbito lhe deu o coração um salto, afinal, se Egas Moniz foi tão bom aio quanto dele proclamam os anais, se não nasceu só para levar o aleijadinho a Carquere ou, mais tarde, para ir a Toledo de baraço ao pescoço, então seguramente não teria faltado ao seu pupilo com suficientes máximas cristãs e políticas, e sendo o latim, por excelência, o veículo destes aperfeiçoamentos, é de supor que o real menino, além de explicar-se naturalmente em galego, latinizaria o quantum satis para poder declamar, chegada a hora, perante tantos e tão cultos cruzados estrangeiros, a arenga supracitada, uma vez que eles, de línguas, não entenderiam então mais do que a sua de berço e iguais rudimentos da outra, com a ajuda dos frades intérpretes. Saberia portanto D. Afonso Henriques latim e não precisou de dar homem por si na célebre assembleia, quiçá, até, tenha sido ele o próprio autor das célebres palavras, hipótese muito plausível em pessoa que, por seu mesmo punho, e no mesmo latim, tinha escrito a História da Conquista de Santarém, consoante gravemente no-lo explica Barbosa Machado na sua Bibliotheca Lusitana, mais nos informando que o manuscrito, ao tempo, se conservava no arquivo do Real Convento de Alcobaça, no fim de um Livro de S. Fulgêncio. Há que dizer que o revisor não crê em uma só palavra do que os seus olhos estão vendo, sobeja-lhe o cepticismo, ele próprio já o declarou, e para cortar a direito, como também para distrair-se dos enfados desta leitura obrigada, foi à fonte limpa das Historiografias modernas, buscou e encontrou, bem me queria a mim parecer, Machado, crédulo, copiou sem conferir o que haviam escrito Frei Bernardo de Brito e Frei António Brandão, é assim que se arranjam os equívocos históricos, Fulano diz que Beltrano disse que de Cicrano ouviu, e com três autoridades dessas se faz uma história, sendo afinal certo que a da Conquista de Santarém a escreveu um cónego regrante de Santa Cruz de Coimbra, de quem nem o simples nome ficou para tomar na biblioteca o lugar a que tem justo direito e dela retirar o rei usurpador.

Raimundo Silva está de pé, tem posta sobre os ombros a manta, mas de jeito que uma ponta arrasta pelo chão quando se move, e em voz alta lê, como um arauto lançando as proclamas, isto é, o discurso que aos cruzados fez el-rei nosso senhor, por esta guisa, Sabemos bem, e temos diante dos olhos, que vós haveis de ser homens fortes, denodados e de grande destreza, e, em verdade, a vossa presença não diminuiu à nossa vista o que de vós nos dissera a fama. Não vos reunimos aqui para saber o quanto a vós, homens de tanta riqueza, seria bastante prometer para que, enriquecidos com as nossas dádivas, ficásseis conosco para o cerco desta cidade. Dos mouros, sempre inquietados, nunca pudemos acumular tesouros, com os quais acontece algumas vezes não se poder viver em segurança. Mas, porque não queremos que ignoreis os nossos recursos e quais as nossas intenções para convosco, entendemos que nem por isso deveis desprezar a nossa promessa, pois consideramos como sujeito ao vosso domínio tudo o que a nossa terra possui. Duma coisa porém estamos certos, e é que a vossa piedade vos convidará mais a este trabalho e ao desejo de realizar tão grande feito, do que vos há-de atrair à recompensa a promessa do nosso dinheiro. Ora, para que com a algazarra dos vossos homens não seja perturbado o que vos disser, escolhei quem vós quiserdes, a fim de que, retirados à parte uns e outros, benigna e sossegadamente determinemos em conjunto a causa da nossa promessa, e resolvamos sobre aquilo que vos expomos, para depois ser explicado a todos em comum o que tivermos resolvido, e assim, dado o assentimento de ambas as partes, com juramento e garantias certas, seja isso ratificado para interesse de Deus.

Não este discurso não é obra de rei principiante, sem excessiva experiência diplomática, aqui tem dedo, mão e cabeça de eclesiástico maior, talvez o próprio bispo do Porto, D. Pedro Pitões, e seguramente o arcebispo de Braga, D. João Peculiar, que juntos e concertados tinham logrado persuadir os cruzados, de passagem no Douro, a virem ao Tejo ajudar à conquista, dizendo-lhes, por exemplo, Ao menos ouçam as razões que a favor da prestação de auxílio temos para dar-lhes, à vista da mercadoria. E tendo a viajem do Porto até Lisboa durado três dias, não é preciso ser dotado duma imaginação prodigiosa para supor que os dois prelados, de caminho vieram fazendo o rascunho, com o fito de adiantar trabalho, ponderando os argumentos, insinuando muito, acautelando o possível, com promessas liberalíssimas envolvidas em prudentes reservas mentais, não esquecendo a lisonja, recurso embaidor que geralmente frutifica em mil por um, mesmo se o terreno é sáfaro e pouco destro o semeador. Raimundo Silva, afogueado, deixa cair a manta com teatral ademane, sorri sem alegria, Isto não é discurso em que se acredite, mais parece lance shakespeariano que de bispos arrabaldinos, e regressa à secretária senta-se, abana a cabeça sucumbidamente, Pensarmos nós que nunca viremos a saber que palavras disse realmente D. Afonso Henriques aos cruzados, ao menos bons dias, e que mais, e que mais, e a claridade ofuscante desta evidência, não poder saber, aparece-lhe, se súbito, como uma infelicidade, seria capaz de renunciar a alguma coisa, não se pergunta quê nem quanto, a alma, se a há, os bens, se os tivesse, para encontrar, de preferência nesta parte de Lisboa onde vive e que é precisamente um papel era a cidade toda, um pergaminho, um papiro, avulso, um recorte de jornal, uma gravação, podendo ser, ou uma lápide insculpida, que registasse a vera fala, o original, por assim dizer, porventura menos subtil em arte dialéctica do que esta versão amaneirada, onde justamente faltam as fortes palavras dignas da ocasião.

O jantar foi rápido, simples, ainda mais ligeiro que o almoço, mas Raimundo Silva bebeu duas chávenas de café em vez de uma, para se defender do sono que não tardaria a ameaçar, vista a mal dormida noite passada. Num ritmo certo, as páginas vão mudando de lugar, sucedem-se os quadros e os episódios, agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discórdia que se levantou entre os cruzados, depois da arenga real, sobre se deveriam, ou não, ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa, se ficariam aqui ou seguiriam, como previsto, para a Terra Santa, onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo, sob os ferros turcos. Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lançar fora da cidade a estes mouros e fazê-la cristã seria também serviço de Deus, contestavam os contrários que, se esse era serviço de Deus, serviço menor seria, e que cavaleiros tão principais como ali todos se prezavam de ser tinham por obrigação acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra, não neste cu do mundo, entre labregos e tinhosos, que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses, porém não o averiguou o historiador, talvez por não valer a pena escolher entre os dois insultos. Berravam os guerreiros como possessos, Deus me perdoe, violentos de palavras e de gestos, e os que defendiam a ideia de continuar viagem para os Santos Lugares afirmavam que muito maiores lucros e proveitos tirariam da extorsão do dinheiro e mercadorias das naus que no mar encontrassem, tanto de Espanha como de África, anacronismo de que só ao historiador se devem pedir contas, falar de naus no século doze, do que da tomada desta cidade de Lisboa, com menos perigo de vidas, que as muralhas são altas e os mouros muitos. Acertara D. Afonso Henriques em cheio quando prognosticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra, palavra que sendo árabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses, flamengos, bolonheses bretões, escoceses e normandos, misturados. Enfim, lá se acomodaram as contrárias partes ao cabo duma disputa verbal que durou todo este dia de S. Pedro, e amanhã, que é o trinta de junho, irão os representantes dos cruzados, agora concordes, informar o rei de que sim senhor o auxiliarão na conquista de Lisboa, a troco dos haveres dos inimigos, que além estão olhando dás muralhas, e outras facilidades directas e indirectas.
Há dois minutos que Raimundo Silva olha, de um modo tão fixo que parece vago, a página onde se encontram consignados estes inabaláveis factos da História não por desconfiar de que nela se esteja ocultando algum último erro, uma qualquer pérfida gralha que tivesse arranjado artes de esconder-se nos refegos duma oração gramatical tortuosa e agora, negaceando, o provoque a coberto também da sua cansada vista e do sono geral que o invade e entorpece. Que o invadia e entorpecia, seriam os tempos verbais exactos. Porque há três minutos que Raimundo Silva está tão deserto como se tivesse tomado uma pastilha de benzedrina, de um resto que ainda aí tem, por trás dos livros, o que sobrou da receita de um médico idiota. Está como fascinado, lê, relê, torna a ler a mesma linha, esta que de cada vez redondamente afirma que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa. Quis o acaso, ou foi antes a fatalidade que estas unívocas palavras ficassem reunidas numa linha só, assim se apresentando com a força de uma legenda, são como um dístico uma inapelável sentença, mas são também como uma provocação, como se estivessem a dizer ironicamente, Faz de mim outra coisa, sé és capaz. A tensão chegou a pontos que Raimundo Silva, de repente, não pôde aguentar mais, levantou-se, empurrando a cadeira para trás, e agora caminha agitado de um lado para o outro no reduzido espaço que as estantes, o sofá e a secretária lhe deixam livre, diz e repete, Que disparate, que disparate, e como se precisasse de confirmar a radical opinião, tornou a pegar na folha de papel, graças ao que podemos nós, agora, que antes havíamos chegado a duvidar, certificarnos de que não há tal disparate, ali se diz mui explicadamente que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa, e a prova de que assim foi que aconteceu iríamos encontrá-la nas páginas seguintes, lá onde se descreve o cerco, o assalto às muralhas, o combate nas ruas e nas casas, a mortandade excessiva, o saque, Por favor, diga-nos o senhor revisor onde está aí o disparate, esse erro que nos escapa, é natural, não beneficiamos da sua grande experiência, às vezes olhamos e não vemos, mas sabermos ler, creia, sim, tem razão, não compreendermos sempre tudo, já se adivinha porquê, o preparo técnico, senhor revisor, o preparo técnico, e também, confessemo-1o, às vezes dá-nos a preguiça de ir ao dicionário ver os significados, o que só nos prejudica. É um disparate, insiste Raimundo Silva como se estivesse a responder-nos, não farei semelhante coisa, e por que a faria, um revisor é uma pessoa séria no seu trabalho, não joga, não é prestidigitador, respeita o que está estabelecido em gramáticas e prontuários, guia-se pelas regras e não as modifica, obedece a um código deontológico não escrito mas imperioso, é um conservador obrigado pelas conveniências a esconder as suas voluptuosidades, dúvidas, se alguma vez as tem, guarda-as para si, muito menos porá um não onde o autor escreveu sim, este revisor não o fará. As palavras que o Dr. Jekill acabou de dizer tentam opor-se a outras que não chegámos a ouvir, essas disse-as Mr. Hyde, não seria preciso mencionar estes dois nomes para percebermos que neste prédio velho do bairro do Castelo assistimos a mais uma luta entre o campeão angélico e o campeão demoníaco, esses dois de que estão compostas e em que se dividem as criaturas, referimo-nos às humanas, sem exclusão dos revisores. Mas esta batalha, desgraçadamente, vai ganhá-la Mr. Hyde, percebe-se pela maneira como Raimundo Silva está a sorrir neste momento, com uma expressão que não esperaríamos dele, de pura malignidade, desapareceram-lhe do rosto todos os traços do Dr. Jekill, é evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como.

Em tantos anos de honrada vida profissional, jamais Raimundo Silva se atrevera, em plena consciência, a infringir o antes citado código deontológico não escrito que pauta as acções do revisor na sua relação com as ideias e opiniões dos autores. Para o revisor que conhece o seu lugar, o autor, como tal, é infalível. Sabe-se, por exemplo, que o revisor de Nietzsche, sendo embora fervoroso crente, resistiu à tentação de introduzir, também ele, a palavra Não numa certa página, transformando em Deus não morreu o Deus está morto do filósofo. Os revisores, se pudessem, se não estivessem atados de pés e mãos por um conjunto de proibições mais impositivo que o código penal, saberiam mudar a face do mundo, implantar o reino da felicidade universal, dando de beber a quem tem sede, de comer a quem tem fome, paz aos que vivem agitados, alegria aos tristes, companhia aos solitários, esperança a quem a tinha perdida, para não falar da fácil liquidação das misérias e dos crimes, porque tudo eles fariam pela simples mudança das palavras, e se alguém tem dúvidas sobre estas novas demiurgias não tem mais que lembrar-se de que assim mesmo foi o mundo feito e feito o homem, com palavras, umas e não outras, para que assim ficasse e não doutra maneira. Faça-se, disse Deus, e imediatamente apareceu feito.

Raimundo Silva não continuará a ler. Está exausto, foram-se-lhe todas as forças naquele Não em que acabou de jogar, além da imaculada reputação que tem merecido, a tranquilidade duma consciência em paz. A partir de hoje viverá para o momento, mais tarde ou mais cedo, mas inevitável, em que alguém lhe aparecerá a pedir contas do erro, poderá ser o justamente enfadado autor, ou o crítico irónico e implacável, ou um leitor atento em carta à editora, ou ainda, amanhã mesmo, o Costa, quando vier buscar as provas, que é bem capaz de aparecer ele próprio aí, com o seu ar heróico e sacrificado, Tive de vir eu, é sempre o melhor, fazer cada um mais do que o seu dever. E se ao Costa lhe der para folhear as provas antes de metê-las na pasta, se nesse acaso lhe saltar aos olhos a página maculada de mentira, se estranhar o aparecimento duma nova palavra em provas que já são quartas, se se der ao trabalho de lê-la e entender o que passou a estar escrito, o mundo, então reemendado, terá vivido diferentemente só um curto instante, o Costa dirá, ainda que hesitando, Senhor Silva, parece haver aqui um erro, e ele fingirá olhar e não terá mais remédio que concordar, Que tolice a minha, não sei como pôde isto ter acontecido, efeitos do sono, foi o que foi. Não será necessário desenhar um deleatur para eliminar a ominosa palavra, bastará riscá-la, simplesmente, como o faria uma criança, o mundo regressará à antiga e tranquila órbita, o que foi continuará a ser, e, daqui em diante, o Costa, ainda que não venha a falar do estranho caso, terá mais um motivo para proclamar que a Produção está por cima de todas as coisas.


Raimundo Silva deitou-se. Está de costas, com as mãos cruzadas atrás da nuca, não sente ainda o frio. Tem dificuldade em reflectir no que fez, sobretudo não consegue reconhecer a gravidade do seu acto, e chega mesmo a surpreender-se por nunca antes lhe ter ocorrido a ideia de alterar o sentido doutros livros que reviu. Num momento que lhe parece ser como se estivesse a desdobrar-se, a afastar-se de si mesmo, observa-se a pensar, e assusta-se um pouco. Depois encolhe os ombros, adia a preocupação que começava a insinuar-se no seu espírito, Veremos, amanhã decidirei se deixo ficar a palavra, ou a retiro. Ia voltar-se para o lado direito, virando as costas à metade vazia da cama, quando percebeu que a sereia de aviso se calara, quem sabe há quanto tempo, Não, ouvi-a quando estava a dizer o discurso do rei, lembro-me exactamente, entre duas frases, o mugido rouco, como de touro que se tivesse perdido entre a névoa, bramindo para o céu branco, longe da manada, é estranho que não haja animais marinhos com vozes capazes de encher a vastidão do mar, ou este largo rio, vou ver como está o céu. Levantou-se, cobriu-se com o roupão de fazenda grossa que, de inverno, sempre estende sobre os cobertores da cama, e foi abrir a janela. O nevoeiro desaparecera, não se acredita que tantas cintilacões tivessem estado ocultas nele, as luzes pela encosta abaixo, as outras do outro lado, amarelas e brancas, projectada sobre a água como trémulos lumes. Está mais frio. Raimundo Silva pensou, pessoanamente. Se eu fumasse, acenderia agora um cigarro, a olhar o rio, pensando como tudo é vago e vário assim, não fumando, apenas pensarei que tudo é vário e vago, realmente, mas sem cigarro, ainda que o cigarro, se o fumasse, por si mesmo exprimisse a variedade e a vaguidade das coisas, como o fumo, se fumasse. O revisor demora-se à janela, ninguém o chamará, Vem para dentro, olha que te constipas, e ele tenta imaginar que o chamam docemente, mas fica ainda um minuto a pensar, vago ele, e vário, e enfim, como se outra vez o tivessem chamado, Vem para dentro, peço-te, condescende em fechar a janela, deita-se sobre o lado direito, à espera. De sono.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Não o tem descrito assim o historiador no seu livro!



História do cerco de Lisboa, 2º capítulo;


Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que a pode dar a natureza seria capaz de distinguir no oriente do céu a diferença inicial que separa a noite da madrugada, o almuadem acordou. Acordava sempre a esta hora, segundo o sol, tanto lhe fazendo que fosse verão como inverno, e não precisava de qualquer artefacto de medir o tempo, nada mais que uma mudança infinitesimal na escuridão do quarto, o pressentimento da luz apenas adivinhada na pele da fronte, como um ténue sopro que passasse sobre as sobrancelhas ou a primeira e quase imponderável carícia que, tanto quanto se sabe ou acredita, é arte exclusiva e segredo até hoje não revelado daquelas formosas huris que esperam os crentes no paraíso de Maomé. Segredo, e também prodígio, se não mistério intransponível, é a virtude que elas têm de refazer a virgindade tão-logo a perdem, pelos vistos suprema bem-aventurança na vida eterna, o que definitivamente vem provar que não se acabam com esta os trabalhos próprios e alheios, outrossim os sofrimentos imerecidos. O almuadem não abriu os olhos. Podia continuar deitado algum tempo ainda, enquanto o sol, muito devagar, se vinha acercando do horizonte da terra, porém tão longe de chegar que nenhum galo da cidade levantara a cabeça para indagar dos movimentos da manhã. É certo que ladrou um cão, sem resultado, que os mais dormiam, talvez a sonhar que em sonhos estavam ladrando. É um sonho, pensavam, e deixavam-se dormir, rodeados por um mundo povoado de cheiros sem dúvida estimulantes, mas nenhum tão urgente que os fizesse despertar em sobressalto, o odor inconfundível da ameaça ou do medo, para não dar senão estes exemplos elementares. O almuadem levantou-se tacteando no escuro, encontrou a roupa com que acabou de cobrir-se e saiu do quarto. A mesquita estava silenciosa, só os passos inseguros ecoavam sob os arcos, um arrastar de pés cautelosos, como se temesse ser engolido pelo chão. A outra qualquer hora do dia ou da noite nunca experimentava esta angústia do invisível, apenas no momento matinal, este, em que iria subir a escada da almádena para chamar os fiéis à primeira oração. Um escrúpulo supersticioso representava-lhe na imaginação a sua grave culpa de continuarem os moradores a dormir quando já o sol estivesse sobre o rio, e acordando de repelão, aturdidos pela luz clara, perguntassem, aos gritos, onde estava o almuadem que não chamara à hora própria, alguém mais caridoso diria, Por seu mal estará doente, e não era verdade, desaparecera, sim, levado para o interior da terra por um génio das trevas maiores. A escada, em caracol, era trabalhosa de subir, de mais sendo este almuadem já velho, felizmente não precisava que lhe vendassem os olhos como às mulas das atafonas se faz para que lhes não dê o mareio. Quando chegou acima sentiu na cara a frescura da manhã e a vibração da luz alvorecente, ainda cor nenhuma, que a não pode ter aquela pura claridade que antecede o dia e vem tanger na ele um arrepio subtil, como de uns invisíveis dedos, impressão única que faz pensar se a desacreditada criação divina não será, afinal, para humilhação de cépticos e ateus, um irónico facto da história. O almuadem correu a mão, lentamente. ao longo do parapeito circular até encontrar, insculpida na pedra, a marca que apontava a direcção de Meca, cidade santa. Estava preparado. Uns instantes ainda para dar tempo ao sol de assomar aos balcões da terra a sua primeira aura, e também para tornar clara a voz, porque a ciência proclamativa de um almuadem há-de ficar patente logo ao primeiro grito, e nele é que tem de demonstrar-se não quando a garganta já se dulcificou com o trabalho da fala e o consolo da comida. Aos pés do almuadem há uma cidade, mais abaixo um rio, tudo dorme ainda, mas inquietamente. A manhã começa a mover-se sobre as casas, a pele da água torna-se espelho do céu, e então o almuadem inspira fundo e grita, agudíssimo, Allahu akbar, apregoando aos ares a sobre todas grandeza de Deus, e repete, como gritará e repetirá as fórmulas seguintes, em extático canto tomando o mundo por testemunha de que não há outro Deus senão Alá, e que Maomé é o enviado de Alá, e tendo dito estas verdades essenciais chama à oração, Vinde ao azalá, mas sendo o homem de natureza preguiçoso, ainda que crente no poder Daquele que nunca dorme, o almuadem repreende caridosamente esses outros a quem as pálpebras ainda pesam, A oração é melhor que o sono, As-salatu jayrun min an-nawn, para os que nesta língua o entendem enfim concluiu clamando que Alá é o único Deus, La ilaha illa llah, mas agora só uma vez, que é quanto basta quando se trate de verdades definitivas. A cidade murmura as orações, o sol apontou e ilumina as açoteias, não tarda que nos pátios apareçam os moradores. A almádena está em plena luz. O almuadem é cego.

Não o tem descrito assim o historiador no seu livro. Apenas que o muezim subiu ao minarete e dali convocou os fiéis à oração na mesquita, sem rigores de ocasião, se era manhã ou meio-dia, ou se estava a pôr-se o sol, porque certamente em sua opinião, o miúdo pormenor não interessaria à história, somente que ficasse o leitor sabendo que o autor conhecia das coisas daquele tempo o suficiente para fazer delas responsável menção. E isto lhe deveríamos agradecer porque o seu tema, sendo de guerra e de cerco, portanto de virilidades superiores, dispensaria bem as deliquescências da prece, que é de todas as situações a mais sujeita, pois nela se prontifica o rezador sem luta, rendido por uma vez. Ainda que, para que não quede sem exame e consideração o que esteja em contrário destas oposições entre oração e guerra, aqui se pudesse recordar já, estando tão próximo o tempo e sendo tantas e tão preclaras as testemunhas ainda vivas, aqui se pudesse recordar, tornamos a dizer, aquele milagre de Ourique, celebérrimo, quando Cristo apareceu ao rei português, e este lhe gritou, enquanto o exército prostrado no chão orava, Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, e não a mim que creio o que podeis, mas Cristo não quis aparecer aos mouros, e foi pena, que em vez da crudelíssima batalha poderíamos, hoje, registar nestes anais a conversão maravilhosa dos cento e cinquenta mil bárbaros que afinal ali perderam a vida, um desperdício de almas de bradar aos céus. É assim, nem tudo se pode evitar, nunca a Deus faltámos com os nossos bons conselhos, mas o destino tem lá as suas leis inflexíveis, e quantas vezes com inesperados e artísticos efeitos, como foi este de haver podido aproveitar-se Camões do inflamado grito, distribuindo-o tal qual em dois versos imortais. É bem verdade que na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se aproveita.

Eram bons aqueles tempos, quando, para receber satisfação, não tínhamos mais que pedir com as palavras apropriadas, mesmo em casos difíceis, por assim dizer já desenganado o paciente e sem esperança de remédio. Exemplo disto é este mesmo rei, que, tendo nascido de pernas encolhidas, ou atrofiadas, no falar de agora, foi extraordinariamente curado, sem que médico algum lhe tivesse posto a mão em cima, e se puseram não lhe adiantou. E até, certamente por ser pessoa fadada para a realeza, nem há sinais de que tenha sido preciso importunar as altas potestades, à Virgem e ao Senhor nos referimos, não aos anjos da sexta hierarquia, para que se produzisse o salutar sucesso, graças ao qual, sabe-se lá, Portugal deve talvez a sua independência. Foi caso que estando dormindo em sua cama D. Egas Moniz, aio do menino Afonso, lhe apareceu Santa Maria em visão e disse, D. Egas Moniz, dormes, e ele, que não sabia se estava acordado ou a sonhar, perguntou, para ter a certeza, Senhora, quem sois vós, e ela respondeu, com bons modos, Eu sou a Virgem, e te mando que vás a Carquere, que fica no concelho de Resende, e cava em esse lugar e acharás uma igreja que em outro tempo foi começada em meu nome, e acharás também uma imagem minha, conserta-a que bem necessitada está depois do triste abandono, e depois farás aí vigília, e porás o menino sobre o altar, e fica sabendo que nesse instante quedará sano e curado, e cuida bem dele para o diante, que o meu Filho sei eu que tem na sua ideia dar-lhe cargo de destruir os inimigos da fé, e claro está que não poderia fazê-lo assim de pernas curtas. Acordou D. Egas Moniz o mais alegre que se pode, reuniu o pessoal e, cavalgando a mula, foi dali a Carquere e mandou cavar no sítio indicado pela Virgem, e não é que lá estava a igreja, mas a surpresa é nossa, não deles, porque naqueles abençoados tempos não eram nunca gratuitos ou enganosos os avisos superiores. Verdade é que não cumpriu D. Egas precisamente os ditados da Virgem, que muito explicado ficou ter-lhe ela mandado que cavasse, entendemos nós que por suas próprias mãos, e vai ele, que fez, deu ordem que outros cavassem, os servos da gleba, provavelmente já naquela época havia destas desigualdades sociais. Agradecemos à Virgem não ser ela melindrosa a pontos de fazer encolher outra vez as pernas do menino Afonso, porque, assim como há milagres para o bem, também os tem havido para o mal, testemunhem-no aqueles infelizes porcos da Escritura que se lançaram ao precipício quando o Bom Jesus lhes meteu no corpo os mafarricos que no endemoninhado estavam, de que resultou padecerem martírio os inocentes animais, e só eles, pois muito maior tinha sido a queda dos anjos rebeldes, logo feitos demónios, quando do motim, e, que se saiba, não morreu nenhum, com o que não se pode perdoar a imprevidência de Deus Nosso Senhor que por essa desatenção deixou fugir a oportunidade de lhes acabar com a raça por uma vez, de bom conselho é o provérbio que previne, Quem o seu inimigo poupa, às mãos lhe morre, oxalá não venha Deus a ter de arrepender-se um dia, tarde de mais. Ainda assim, se nesse fatal instante tiver tempo de recordar a sua vida passada, esperemos que se lhe faça luz no espírito e possa compreender que nos deveria ter poupado, a todos nós, frágeis porcos e humanos, aqueles vícios, pecados e sofrimentos de insatisfação que são, diz-se, a obra e a marca do maligno. Entre o martelo e a bigorna somos um ferro em brasa que de tanto lhe baterem se apaga.

De história sacra, por agora, temos que nos chegue. Importaria saber, isso sim, é quem escreveu o relato daquele formoso acordar de almuadem na madrugada de Lisboa, com tal abundância de pormenores realistas que chega a parecer obra de testemunha aqui presente, ou, pelo menos, hábil aproveitamento de qualquer documento coetâneo, não forçosamente relativo a Lisboa, pois, para o efeito, não se precisaria mais que uma cidade, um rio e uma clara manhã, composição sobre todas banal, como sabemos. A resposta, surpreendente, é que ninguém escreveu, que, embora pareça que sim, não está escrito, tudo aquilo não foi mais que pensamentos vagos da cabeça do revisor enquanto ia lendo e emendando o que escondidamente passara em falso nas primeiras e segundas provas. O revisor tem este notável talento de desdobrar-se, desenha um deleatur ou introduz uma vírgula indiscutível, e ao mesmo tempo, aceite-se o neologismo, heteronimiza-se, é capaz de seguir o caminho sugerido por uma imagem, uma comparação, uma metáfora, não raro o simples som duma palavra repetida em voz baixa o leva, por associação, a organizar polifónicos edifícios verbais que tornam o seu pequeno escritório num espaço multiplicado por si mesmo, ainda que seja muito difícil explicar, em vulgar, o que tal coisa quer dizer. Lá lhe pareceu que era informar pouco limitar-se o historiador a falar de muezim e minarete, unicamente para introduzir, se são permitidos juízos temerários, um pouco de cor local e tinta histórica no arraial inimigo, imprecisão semântica que convém corrigir imediatamente, uma vez que arraial é de sitiantes, não de sitiados, que estes estão, por enquanto, instalados com suficiente comodidade na cidade que, salvo uma ou outra intermitência, é sua desde o ano de setecentos e catorze, pelas contas dos cristãos, as do rosário mouro são outras, como se sabe. Esta correcção fê-la o próprio revisor, que tem mais do que satisfatória ciência de calendários e sabe que a Hégira começou, segundo a lição da Arte de Verificar as Datas, obra indispensável, no dia dezasseis de julho de seiscentos e vinte e dois, depois de Cristo, DC por abreviatura, sem esquecer, no entanto, que sendo o ano muçulmano governado pela lua, portanto mais curto que o da cristandade, orientado pelo sol, é sempre preciso descontar três anos por cada século andado. Bom revisor seria este, assim escrupuloso, se cuidasse de aparar as asas a um discorrer propenso a efabulações ocasionalmente irresponsáveis, foi aqui o caso de ter pecado por facilitação, incorrendo em erros evidentes e em assertos duvidosos, três é o que se desconfia, que, a provarem-se, em definitivo mostram que não tinha razão nenhuma o historiador quando lhe deu conselho, leviano, de que se dedicasse à história. Quanto à filosofia, Deus nos livre.

O primeiro ponto suspeito, segundo a ordem inversa do relato, é aquela peregrina ideia de existirem, no parapeito das varandas das almádenas, sinais na pedra que apontariam, provavelmente na forma de setas, a direcção de Meca. Por muito adiantada que estivesse na época a ciência geográfica e agrimensora dos árabes e outros mouros, é pouco crível que soubessem determinar, com a exactidão que se insinua, a posição de uma caaba na superfície do planeta, onde precisamente sobreabundam as pedras, umas mais sagradas que outras. Todas estas coisas, sejam elas reverências, ou genuflexões, ou olhares para cima ou para baixo, se fazem por aproximação, ao sentir, se podemos autorizar-nos esta linguagem de pescador à linha, o que importa, afinal, é que Deus e Alá possam ler nos corações e não levem a mal que, por ignorância, lhes voltemos as costas, e quando dizemos ignorância tanto pode ser a nossa como a deles, que nem sempre estão onde se comprometeram a estar. O revisor é homem deste tempo, habituaram-no a confiar e a firmemente crer nos sinais das estradas, não admira que tivesse caído na anacrônica tentação, quiçá impelido por um arrebato de caridade, tendo em conta a cegueira do almuadem. É sabido que não é a qualidade do pano que evita as nódoas, diz-se mesmo que no melhor deles é que a nódoa cai, e também que não há uma sem duas, pois aí temos o segundo erro, este sim, gravíssimo, pois levaria o leitor desprevenido, se escrita houvesse, e felizmente não há, a tomar por correcta e conforme com os factos da vida muçulmana a descrição dos actos do almuadem depois de acordar. Há erro, dizemos, porquanto o muezim, palavra preferida pelo historiador, não procedeu às abluções rituais antes de chamar os crentes à oração, achando-se por conseguinte em estado de impureza, situação improbabilíssima se considerarmos quão próximos estamos ainda, no tempo, da primeira fonte do Islão, quatro séculos e pico, por assim dizer, no berço. Lá mais para o diante não faltarão relaxamentos, escamoteações de jejuns, interpretações duvidosas de regras que parecem claras, é que não há nada que mais fatigue as pessoas do que a observância rigorosa dos princípios, antes que a carne ceda já o espírito fraquejou, mas a ele não pedem contas, à pobrezinha é que invectivam, insultam e caluniam. Agora ainda se vive num tempo de fé completa, o almuadem seria o último dos homens se ousasse subir à almádena sem levar o coração puro e as mãos lavadas, e assim fica proclamado inocente da culpa com que o carregou a ligeireza imperdoável do revisor. Apesar da competência profissional com que o ouvimos expressar-se durante a conversa com o historiador, é tempo de introduzir aqui uma primeira dúvida sobre as consequências da confiança de que o investiu o autor da História do Cerco de Lisboa, acaso em hora de fatigada displicência ou com preocupações de próxima viagem, quando permitiu que a leitura final das provas fosse tarefa exclusiva do técnico dos deleatures, sem fiscalização. Trememos só de imaginar que aquela descrição do amanhecer do almuadem poderia tomar lugar, abusivo, no científico texto do autor, frutos, um e outro, de estudos aturados, de pesquisas profundas, de confrontações minuciosas. Duvida-se, por exemplo, ainda que seja sempre de boa prudência duvidar da própria dúvida, que o historiador mencionasse no seu relato cães e ladrar de cães, pois ele sabe que o cão, para os árabes, é impuro animal, como o é tambémo porco, sendo portanto demonstração de crassa ignorância supor que os mouros de Lisboa, tão zelosos, estariam vivendo paredes meias com a canzoada. Chiqueiro à porta de casa e casota de mastim ou açafate de fraldiqueiro são invenções cristãs, não será por casualidade indiferente que os muçulmanos chamam perros aos guerreiros da cruz, e muita sorte que não lhes tenham chamado cerdos, pelo menos não consta. Claro que, se realmente assim é, faz pena não poder contar mais com a graça de um cão a ladrar à lua ou coçando a orelha atormentada de carraças, mas a verdade, se finalmente a encontramos, deve ser posta acima de todas as outras considerações, seja contra ou a favor, com o que deveríamos, aqui mesmo, dar por não escritas as palavras que descreveram a última madrugada pacífica de Lisboa se não soubéssemos já que aquele discurso falso, embora coerente, e esse é o perigo maior, não saiu nunca da cabeça do revisor, antes não passou de seu devaneio fabulante e irrisório.

Está demonstrado, portanto, que o revisor errou, que se não errou confundiu, que se não confundiu imaginou, mas venha atirar-lhe a primeira pedra aquele que não tenha errado, confundido ou imaginado nunca. Errar, disse-o quem sabia, é próprio do homem, o que significa, se não é erro tomar as palavras à letra, que não seria verdadeiro homem aquele que não errasse. Porém, esta suprema máxima não pode ser utilizada como desculpa universal que a todos nos absolveria de juízos coxos e opiniões mancas. Quem não sabe deve perguntar, ter essa humildade, e uma precaução tão elementar deveria tê-la sempre presente o revisor, tanto mais que nem sequer precisaria sair de sua casa, do escritório onde agora está trabalhando, pois não faltam aqui os livros que o elucidariam se tivesse tido a sageza e prudência de não acreditar cegamente naquilo que supõe saber, que daí é que vêm os enganos piores, não da ignorância. Nestas ajoujadas estantes, milhares e milhares de páginas esperam a cintilação duma curiosidade inicial ou a firme luz que é sempre a dúvida que busca o seu próprio esclarecimento. Lancemos, enfim, a crédito do revisor ter reunido, ao longo duma vida, tantas e tão diversas fontes de informação, embora um simples olhar nos revele que estão faltando no seu tombo as tecnologias da informática, mas o dinheiro, desgraçadamente, não chega a tudo, e este ofício, é altura de dizê-lo, inclui-se entre os mais mal pagos do orbe. Um dia, mas Alá é maior, qualquer corrector de livros terá ao seu dispor um terminal de computador que o manterá ligado, noite e dia, umbilicalmente, ao banco central de dados, não tendo ele, e nós, mais que desejar que entre esses dados do saber total não se tenha insinuado, como o diabo no convento, o erro tentador.

Seja como for, enquanto não chega esse dia, os livros estão aqui, como uma galáxia pulsante, e as palavras, dentro deles, são outra poeira cósmica flutuando, à espera do olhar que as irá fixar num sentido ou nelas procurará o sentido novo, porque assim como vão variando as explicações do universo, também a sentença que antes parecera imutável para todo o sempre oferece subitamente outra interpretação, a possibilidade duma contradição latente, a evidência do seu erro próprio. Aqui, neste escritório onde a verdade não pode ser mais do que uma cara sobreposta às infinitas máscaras variantes, estão os costumados dicionários da língua e vocabulários, os Morais e Aurélios, os Morenos e Torrinhas, algumas gramáticas, o Manual do Perfeito Revisor, vademeco de ofício, mas também estão as histórias da Arte, do Mundo em geral, dos Romanos, dos Persas, dos Gregos, dos Chineses, dos Árabes, dos Eslavos, dos Portugueses, enfim, de quase tudo que é povo e nação particular, e as histórias da Ciência, das Literaturas, da Música, das Religiões, da Filosofia, das Civilizações, o Larousse pequeno, o Quillet resumido, o Robert conciso, a Enciclopédia Política, a Luso-Brasileira, a Britânica, incompleta, o Dicionário de História e Geografia, um Atlas Universal destas matérias, o de João Soares, antigo, os Anuários Históricos, o Dicionário dos Contemporâneos, a Biografia Universal, o Manual do Livreiro, o Dicionário da Fábula, a Biografia Mitológica, a Biblioteca Lusitana, o Dicionário de Geografia Comparada, Antiga, Medieval e Moderna, o Atlas Histórico dos Estudos Contemporâneos, o Dicionário Geral das Letras, das Belas-Artes e das Ciências Morais e Políticas, e, para terminar, não o inventário geral, mas o que mais à vista está, o Dicionário Geral de Biografia e de História, de Mitologia, de Geografia Antiga e Moderna, das Antiguidades e das Instituições Gregas, Romanas, Francesas e Estrangeiras, sem esquecer o Dicionário de Raridades, Inverosimilhanças e Curiosidades, onde, admirável coincidência que vem a matar neste aventuroso relato, se dá como exemplo de erro a afirmação do sábio Aristóteles de que a mosca doméstica comum tem quatro patas, redução aritmética que os autores seguintes vieram repetindo por séculos e séculos, quando já as crianças sabiam, por crueldade e experimentação, que são seis as patas da mosca, pois desde Aristóteles as vinham arrancando, voluptuosamente contando, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, mas essas mesmas crianças, quando cresciam e iam ler o sábio grego, diziam umas para as outras, A mosca tem quatro patas, tanto pode a autoridade magistral, tanto sofre a verdade com a lição dela que sempre nos vão dando.

Esta inesperada incursão pelas fronteiras da entomologia mostra-nos, de concludente maneira, que os erros assacados ao revisor não são afinal seus, mas destes livros que não fizeram mais do que repetir, sem contra prova, obras mais antigas, e, sendo assim, lamentemos quem veio a ser vítima inocente da boa-fé própria e do alheio erro. É verdade que, condescendendo tanto, voltaríamos a cair na desculpa universal já execrada, mas não o faremos sem prévia condição, vem a ser que, para seu bem, atente o revisor na estupenda lição que sobre os erros nos foi dada por Bacon, outro sábio, no livro chamado Novum organum. Divide ele os erros em quatro categorias, a saber, idola tribus, ou erros da natureza humana, idola specus, ou erros individuais, idola fori, ou erros de linguagem, e finalmente idola theatri, ou erros dos sistemas. Resultam eles, no primeiro caso, da imperfeição dos sentidos, da influência dos preconceitos e paixões, do hábito de julgarmos tudo segundo ideias adquiridas, da nossa insaciável curiosidade apesar dos limites impostos ao nosso espírito, da inclinação que nos leva a encontrar mais analogias entre as coisas do que as que realmente têm. No segundo caso, a fonte dos errores vem da diferença entre os espíritos, uns que se perdem nos pormenores, outros em vastas generalizações, e também da predilecção que temos por certas ciências, o que nos inclina a tudo querer reduzir a elas. Quanto ao terceiro caso, o dos erros de linguagem, o mal está em que muitas vezes as palavras não têm qualquer sentido, ora têm-no indeterminado, ou podem ser tomadas em acepções diversas, e, finalmente, quarto caso, são tantos os erros dos sistemas que não acabaríamos nunca mais se começássemos a enumerá-los aqui. Valha-se, então, o revisor deste catálogo e prosperará, e sirva-se também dos benefícios daquela sentença de Séneca, reticente como aos dias de hoje convém, Onerat discentem turba, non instruit, máxima lapidar que a mãe do revisor, há muitos anos, sem saber latim e pouquíssimo da sua própria língua, traduzia com desassombrado cepticismo, Quanto mais lês, menos aprendes.

Mas, alguma coisa se salvando deste exame e contestação, confirme-se que não foi erro escrever, porque, enfim, escrito está, que era cego o almuadem. O historiador, que somente fala de minarete e muezim, talvez ignorasse que quase todos os almuadens, naquele tempo e por muito tempo depois, eram cegos. E se o sabe, porventura imagina que seria vocação particular da invalidez o canto da oração, ou que as comunidades mouras resolviam assim, parcialmente, como sempre foi feito e continuará a fazer-se, o problema de dar trabalho a gente a Quem faltava o precioso órgão da visão. Erro seu, agora, que a todos invariavelmente acaba por tocar. A verdade histórica, aprenda-o, é Que os almuadens eram escolhidos entre os cegos, não por humanitária política de emprego ou encaminhamento profissional fisiologicamente adequado, mas para que não pudessem devassar a intimidade dos pátios e açoteias que, do alto da almádena, em figura dominavam. O revisor já não se recorda de como o soube, certamente o terá lido em livro digno de confiança, que o tempo não emendou, por isso pode insistir agora que os almuadens eram cegos, sim senhor. Quase todos. Apenas, quando em tal lhe acontece pensar, não consegue repelir de si uma dúvida, se a esses homens não lhes furariam os olhos lúcidos, como se fazia e talvez se faça ainda aos rouxinóis, para que da luz não conhecessem outra manifestação que uma voz ouvida nas trevas, a sua, ou, porventura, a daquele Outro que não sabe mais que repetir as palavras que vamos inventando, estas com que tentamos dizer tudo, bendição e maldição, até o Que nome não terá nunca, inominável.


terça-feira, 31 de julho de 2012

"Tudo quanto não for vida, é literatura"



História do cerco de Lisboa


José Saramago

A Pilar


Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la.
Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não
te resignes.

Do Livro dos Conselhos




Capítulo 1 


Disse o revisor, Sim, o nome deste sinal é deleatur. usamo-lo quando precisamos suprimir e apagar, a própria palavra o está a dizer, e tanto vale para letras soltas como para palavras completas, Lembra-me uma cobra que se tivesse arrependido no momento de morder a cauda, Bem observado, senhor doutor, realmente, por muito agarrados que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria diante da eternidade, Faça-me aí o desenho, mas devagar, É facílimo, basta apanhar-lhe o jeito, quem olhar distraidamente cuidará que a mão vai traçar o terrível círculo, mas não, repare que não rematei o movimento aqui onde o tinha começado, passei-lhe ao lado, por dentro, e agora vou continuar para baixo até cortar a parte inferior da curva, afinal o que parece mesmo é a letra Q maiúscula, nada mais, Que pena, um desenho que prometia tanto, Contentemo-nos com a ilusão da semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças, Que tem isso que ver com a revisão tipográfica, Os senhores autores vivem nas alturas, não gastam o precioso saber em despiciências e insignificâncias, letras feridas, trocadas, invertidas, que assim lhes classificávamos os defeitos no tempo da composição manual, diferença e defeito, então, era tudo um, Confesso que os meus deleatures são menos rigorosos, um rabisco dá-me para tudo, confio-me à sagacidade dos tipógrafos, essa tribu colateral da edípica e celebrada família dos farmacêuticos, capazes até de decifrar o que nem chegou a ser escrito, E depois os revisores que acudam a resolver os problemas, Sois nossos anjos-da-guarda, a vós nos confiamos, você, por exemplo, traz-me à lembrança a minha estremosa mãe, que me fazia e tornava a fazer a risca do cabelo até ficar como traçada a tira-linhas, Obrigado pela comparação, mas, se a sua mãezinha já morreu, valia-lhe a pena agora aperfeiçoar-se por sua conta, sempre chega o dia em que é preciso corrigir mais no profundo, Corrigir, corrijo eu, mas as piores dificuldades resolvo-as à maneira expedita, escrevendo uma palavra por cima de outra, Tenho reparado, Não o diga nesse tom, dentro do que cabe faço o que posso, e quem consegue fazer o que pode, A mais não estará obrigado, sim senhor, sobretudo, como é o seu caso, quando falta o gosto da modificação, o prazer da mudança, o sentido da emenda, Os autores emendam sempre, somos os eternos insatisfeitos, Nem têm outro remédio, que a perfeição tem exclusiva morada no reino dos céus, mas o emendar dos autores é outro, problemático, muito diferente deste nosso, Quer você dizer na sua que a seita revisora gosta do que faz, Tão longe não ouso ir, depende da vocação, e revisor de vocação é fenômeno desconhecido, no entanto, o que parece demonstrado é que, no mais secreto das nossas almas secretas, nós, revisores, somos voluptuosos, Essa nunca eu tinha ouvido, Cada dia traz sua alegria e sua pena, e também sua lição proveitosa, É por experiência que fala, Refere-se à lição, Refiro-me à volúpia, Claro que falo por experiência própria, alguma haveria eu de ter, que é que julga, mas igualmente tenho beneficiado de observação dos comportamentos alheios, que é ciência moral não menos edificadora, Certos autores do passado, se os julgarmos por esse seu critério, seriam gente da espécie, revisores magníficos, estou a lembrar-me das provas revistas pelo Balzac, um deslumbramento pirotécnico de correcções e aditamentos, O mesmo fazia o nosso Eça doméstico, para que não fique sem menção um exemplo pátrio, Agora me ocorre que tanto o Eça como o Balzac se sentiriam os mais felizes dos homens, nos tempos de hoje, diante de um computador, interpolando, transpondo, recorrendo linhas, trocando capítulos, E nós, leitores, nunca saberíamos por que caminhos eles andaram e se perderam antes de alcançarem a definitiva forma, se existe tal coisa, Ora, ora, o que conta é o resultado, não adianta nada conhecer os tenteios e hesitações de Camões e Dante, O senhor doutor é um homem prático, moderno, já está a viver no século vinte e dois, Diga-me cá, os outros sinais, também levam nomes latinos, como o deleatur, Se os levam, ou levaram, não sei,não estou habilitado, talvez fossem tão difíceis de pronunciar que se perderam, Na noite dos tempos, Desculpar-me-á se o contradigo, mas eu não empregaria a frase, Calculo que por ser lugar-comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e provérbios, tudo pode aparecer como novidade, a questão está só em saber manejar adequadamente as palavras que estejam antes e depois, Então por que não diria você noite dos tempos, Porque os tempos deixaram de ser noite de si mesmos quando as pessoas começaram a eserever, ou a emendar, torno a dizer, que é obra doutro requinte e outra transfiguração, Gosto da frase, Eu também, principalmente porque é a primeira vez que a digo, à segunda vez terá menos graça, Ter-se-á tornado em lugar-comum, Ou tópico, que é vocábulo erudito, Creio perceber nas suas palavras uma certa amargura céptica, Vejo-a mais como um cepticismo amargo, Quem diz uma coisa, diz outra, Mas não dirá o mesmo, os autores costumavam ter bom ouvido para estas diferenças, Talvez se me estejam a endurecer os tímpanos, Desculpe, foi sem intenção, Não sou susceptível, adiante, diga-me antes por que se sente assim amargo, ou céptico, como queira, Considere, senhor doutor, a vida quotidiana dos revisores, pense na tragédia de terem de ler uma vez, duas, três, ou quatro, ou cinco vezes, livros que, Provavelmente, nem uma só vez o mereceriam, Fique registado que não fui eu quem proferiu tão gravosas palavras, conheço muito bem o meu lugar na sociedade das letras, voluptuoso, sim, confesso-o, mas respeitador, Não vejo onde esteja essa terribilidade, aliás parecia-me a conclusão óbvia da sua frase, aquela eloquente suspensão, apesar de não se lhe verem as reticências, Se quer saber, vá aos autores, provoque-os com o meio dito meu e o meio dito seu, e verá como eles lhe respondem com o aplaudido apólogo dc Apeles e o sapateiro, quando o operário apontou o erro na sandália duma figura e depois, tendo verificado que o artista emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre a anatomia do joelho, Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe disse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histórica, Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro do quintal, Neste caso, o Apeles tinha razão, Talvez, mas só enquanto não viesse examinar a pintura um sábio anatomista, Você é definitivamente céptico, Todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapateiro é a mais comum entre os humanos, enfim, só o revisor aprendeu que o trabalho de emendar é o único que nunca se acabará no mundo, Tem sentido muitas tentações de sapateiro na revisão do meu livro, A idade traz-nos uma coisa boa que é uma coisa má, acalma-nos, e as tentações, mesmo quando são imperiosas, tornam-se menos urgentes, Por outras palavras, vê o defeito da chinela, mas cala-se, Não, o que eu deixo passar é o erro do joelho, Gosta do livro, Gosto, Di-lo com pouquíssimo entusiasmo, Também não o notei na sua pergunta, Questão de táctica, o autor, ainda que muito Lhe custe, deve exibir alguns ares de modéstia, Modesto sempre o revisor terá de ser, e, se lhe deu um dia para ser imodesto, com isso se obrigou a ser, em figura humana, a suma perfeição, Não reviu a frase, três vezes a palavra ser num fôlego só, é imperdoável, concorde, Deixe ficar a chinela, a falar tudo se desculpa, Pois, mas não lhe perdoo a Avareza da opinião, Recordo-lhe que os revisores são gente sóbria, já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lho eu, é de história, Assim realmente o designariam segundo a classificação tradicional dos gêneros, porém, não sendo propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura, A história também, A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a insisti desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, por outras palavras, quem não pode escrever pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Parece-me um ponto de vista bastante original, Não o creia, senhor doutor, o rei Salomão, que há tanto tempo viveu, já então afirmava que não havia nada de novo debaixo da rosa do sol, ora, quando naquelas épocas recuadas assim o reconheciam, o que não diremos hoje, trinta séculos passados, se a mim não me falha agora a memória da enciclopédia, É curioso, eu, e mais sou historiador, não me lembraria, se perguntado de repente, que tivesse sido há tantos anos, É o que tem o tempo, corre e não damos por ele, está uma pessoa por aí ocupada nos seus quotidianos, subitamente cai em si e exclama, meu Deus como o tempo passa, ainda agora estava o rei Salomão vivo e já lá vão três mil anos, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser filósofo, ou historiador, tem o alarde e a pinta que tais artes requerem, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer em o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser e a continuar a ser autodidactas, sorte deles, mas eu, confesso-lhe, para a criação literária nunca tive jeito, Meta-se a filósofo, homem, O senhor doutor é um humorista de finíssimo espírito, cultiva magistralmente a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela grave e profunda ciência, Sou irônico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não poderia chamar-se-lhe história, Tem a certeza, senhor doutor, Na verdade, você é uma interrogação com pernas e uma dúvida com braços, Não me falta mais que a cabeça, Cada coisa a seu tempo, o cérebro foi a última coisa a ser inventada, O senhor doutor é um sábio, Meu caro amigo, não exagere, Quer ver as últimas provas, Não vale a pena, as correcções de autor estão feitas, o resto é a rotina da revisão final, fica nas suas mãos, Obrigado pela confiança, Muito merecida, Então o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenha a menor dúvida, Que seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou o revisor.






Fortuna Crítica:

"José Saramago: tudo, provavelmente, são ficções; mas a literatura é vida", de Eula Carvalho Pinheiro, Editora Musa, 2012.





"A literatura não tem por objetivo copiar o real, mas dizê-la a sua maneira, num contínuo exercício de linguagem; agindo em simulacro ela é realidade em si mesma"

Eula Carvalho Pinheiro
Mestre pela Universidade Federal de Juiz de Fora
Doutoranda pela Universidade Nova de Lisboa







História do cerco de Lisboa (1989)